O modo como as imagens têm sido tratadas em nosso mundo frenético é inadequado e irreverente, porque teima em ignorar a dignidade do que se vê. Não se sabe exatamente a quantas palavras equivale uma imagem. Ela pode ser uma fonte de palavras. Mas pode também suscitar apenas um silêncio contemplativo, uma reflexão muda.
Na linguagem do sonho as palavras se cristalizam em imagens, porque o caminho que elas percorrem é o da contramão da estimulação: em vez de afetar o neurônio e então ser percebida como imagem, a palavra vem do neurônio investido de volta à percepção. O sonho consiste de imagens e às vezes de palavras que são como recortes de uma colagem, fora do contexto regulamentar em que funcionam na linguagem. É frequente que um sonho apresente uma palavra – às vezes até uma frase – hermética, misteriosa, que figura ali como uma representação daquilo que a palavra pode querer dizer, ao invés de um termo no contexto usual da linguagem. A imagem verbal tem muito mais um caráter conotativo que denotativo no ambiente onírico. E o que ela significa pertence à esfera subjetiva de quem sonha. Mistura-se às imagens com um valor equivalente, é parte do enigma do sonho.
Se refletirmos nesse fenômeno, fica mais fácil perceber por que uma imagem nunca é a mesma para todos que a veem. Se isso é verdade, então como tratar as imagens como objetos fabricados em série? Palavra e imagem têm uma longa história de encontros e desencontros. Ambas estão ligadas à percepção visual e à memória. Ambas vêm impregnadas de sentidos e mensagens de variação infinita – que o diga Andy Warhol.
A criação literária é o momento privilegiado da palavra, quando se convocam imagens e estados subjetivos em função de uma criação única e intransferível, em tudo semelhante ao processo onírico. Não significa que o autor tenha a intenção de contar fatos autobiográficos, mas sim que a obra de criação é, como no sonho, autobiográfica, ainda que não seja confessional. O que se manifesta na obra de criação tem suas raízes firmemente cravadas na subjetividade. Há uma forma de sonho na obra de criação.
Palavra e imagem se fundem num texto que irá afetar de modos diferentes seus leitores. As pesquisas sobre o tema demonstram que a recepção individual do texto literário se dá em uma zona de condensação organizada pelo inconsciente e sua subjetividade. Os elementos que contam para o indivíduo que lê vão além dos conceitos vigentes da cultura e dos preceitos de sua sociedade – embora esses fatores sejam de grande importância e quase sempre determinem o sucesso ou o fracasso de uma obra em termos objetivos. Uma pesquisa puramente conceitual, no entanto, não dá conta do literário, assim como somente uma pesquisa psicanalítica não o conseguiria.
A explicação disso se deve em parte à disjunção palavra-coisa. É como comer o fruto proibido: a palavra ingênua quer designar a coisa, e uma vez perdida a inocência e percebida a precariedade da identificação entre elas, descobre-se que a coisa não está onde a palavra a designara, que já não há redução possível de uma à outra. Descobrimos que fomos vitimados por uma série de separações, quando acontecimentos como perdas, mortes ou omissões se reduziam a palavras que deixavam escapar seu verdadeiro sentido. O passado não cabe nas palavras com que o evocamos porque não foi e não será como o recordamos ou falamos dele. Também não podem prometer nada para o futuro, porque será sempre fantasia tudo que disserem a esse respeito. As expressões se gastam ao ponto do lugar-comum: terra natal, terra prometida, o céu na terra e seus análogos só nos dão a certeza de que “uma coisa sem nome nos acompanha” que não é “nem nossa origem nem nosso futuro” e que por isso é “nosso horizonte permanente” e também a garantia única de alguma “tensão da palavra no momento”**.
Por sua vez, a imagem pode exibir acontecimentos em outra dimensão, mas a ilusão de seu poder também é um risco. Não vale mais nem menos que a palavra: é diferente. Os limites, os vazios, as imprecisões e a multiplicidade das palavras e da linguagem têm uma espécie de contrapartida na imagem. As palavras reduzem e atenuam o real que a imagem resgata. Mas é bom estar atento a um engano também nesse domínio. A imagem reproduzida e divulgada ao ponto que a vemos na propaganda e na mídia se destina a criar novas ilusões, porque a experiência que ela oferece não é a experiência do real. Enquanto representação do real, a imagem merece respeito. Rebaixada a vendedora de ilusões e propagadora da mentira, é uma fraude lamentável, que faz da ilusão uma razão de viver.
Como em tudo nesta vida, o real tem que ser a medida de todas as coisas.
*Texto reeditado.
** Pontalis, J.-B. Perdre de vue. (1988) Paris: Gallimard.
14 comentários:
através de mim uma perfeita e genuína fruidora da estética
Olá Dade!!
Você nos apresenta uma querela que não é nova. Pelo menos desde Platão há justamente uma discussão a respeito da possibilidade da palavra ou mesmo da imagem serem a representação do real (ou apenas simulacro). Se não me engano Heidegger dirá que a "linguagem é a morada do ser". Para os pensadores originários (ou pré-socraticos. Heráclito, mais específicamente)o real se mostrava de outra forma ou pelo menos hava outra relação com o real, onde a palavra dita ou cantada acionava um real. A final de tudo me parece que há aí algumas, muitas, camadas. Pelo menos guardo uma certeza. Algum real é construido a partir de palavrase da imagens vide as guerras, as manipulações midiaticas!!! É or isso, penso, que o mito da caverna(Platão) é tão atual. Será que o que vêmos e ouvimos são apenas sombras refletidas? (ou eu tô viajando muito?)
Oi Dade, suas postagens são ricas e interessantes... Agradeço o carinho de sua visita lá no Sempre Poesia. Bj e uma ótima semana !
Vim, vi, li e me encantei com seu blog, pela qualidade, pelo conteúdo. O conjunto da obra merece aplausos!Beijo.
....há uma ligação sim entre seu texto e o meu - em projecçáo -
Muito bom esse texto.
Um beijinho
Dade
Muito agradecida pela simpática visita que me fizeste, aqui estou, maravilhada com o teu interessantíssimo espaço.
Voltarei sempre, pois aqui se aprende...
Grande abraço!
lindissimo, gostoso demais o seu texto!
beijos!
O prazer de sempre na leitura de seus textos.
Dade, que o poema com que me presenteia.
É de manhã e isso me inspira para o dia que se inicia.
Valeu.
abraços.
eu diria que surreal tbm pode ser a medida, principalmente na poesia...o texto dá o q pensar...
Quantas palavras cabem em uma imagem? E quantos silêncios?...
Palavras e imagens, linguagens, contextualizações e descontextualizações: há encontros, desencontros e frutos proibidos.
E o real é apenas o parâmetro, pois nos cabem, tão-somente, coerências e incoerências.
As suas postagens sempre me fazem pensar e, às vezes, repensar conceitos que eu já pensava bem firmados.
Beijos
muito bom esse texto Dade...
Um beijo
parabéns!!! o seu blog é dez mesmoooooooooooooooooooooooooo!! muito show de bola, dade...
Postar um comentário