sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Minha amiga Clarice








Clarice Lispector dizia que a vantagem de não ter senão uma cultura limitada é poder entregá-la inteira a outra pessoa. E acrescentava: "E bem sei que triste legado." Ela se considerava inculta – não porque fosse mesmo, mas porque toda pessoa capaz de auto-análise compreende o grau de suas limitações.

Penso em Clarice como se tivesse sido muito amiga dela. Converso com seus textos, e uma vez quase perdi o equilíbrio no trem do metrô, dando de cara com uma mulher extremamente parecida com ela. Quando se fica conhecendo muito a vida de alguém, principalmente se esse alguém fez coisas que a gente admira, acaba-se ficando amigo dessa pessoa, o que é melhor do que idealizar e venerar à distância. Conhecer é meio caminho andado para a amizade. As qualidades, que às vezes invejamos (somos assim mesmo) e às vezes nos passam egocentricamente despercebidas, não nos aproximam tanto do outro quanto as fraquezas e dificuldades com as quais nos identificamos.

Mas conhecer um texto como o de Clarice não deixa ninguém indiferente: ou se fica enfeitiçado, ou se detesta. Algumas pessoas não suportam enigmas, paradoxos ou "imprecisões" de linguagem. Lembram do Jack Nicholson de Melhor impossível? Aqueles que precisam controlar a realidade como quem acerta um relógio; os pragmáticos mórbidos, para quem tudo tem que ter uma finalidade imediata que justifique sua existência; os do tipo avestruz, que preferem esconder a cabeça num buraco para não ver as nuances da realidade; os pretensiosos, donos da verdade, racionalistas radicais, fanáticos de qualquer crença ou preconceituosos, esses dificilmente chegariam a perceber a riqueza e a sutileza de sua obra. Sobre eles, o texto de Clarice passa voando.

Mas à medida que o leitor adere ao desafio do inusitado e se deixa iluminar pelas fosforescências do texto, a cada nova leitura vai descobrir uma nova face da escritora de A hora da estrela. O que supõe um texto fugidio feito de ressonâncias de sensações? Como analisar um bater de asas de borboleta entre os dedos, uma gruta carregada de símbolos e sugestões, o comportamento das pessoas em torno de uma mesa farta, o mistério de uma personalidade inóspita ou uma angústia esmagadora que ela consegue reproduzir com palavras?

Não é preciso um alto grau de perfeição para entender o significado do que ela escreveu; nem mesmo grande cultura ou erudição. Basta um pouco de humildade, amor à palavra e capacidade de sentir com o outro. O texto de Clarice fala diretamente ao coração, e essa é sua maior dificuldade: o coração da gente quase sempre usa colete à prova de emoções genuínas.


14 comentários:

Anônimo disse...

Uma análise e tanto!

É mesmo preciso descalçar paradigmas para ler a Clarice e lamber as entrelinhas.
Tens toda razão: quem não se desnuda das vestimentas de qualquer padronização de certas visões, passa distante do que ela nos diz, porque rompeu com limites de arte e criação e radicalizou seu projeto literário.
Tinha dedos livres. Nenhum gênero a prende ou classifica. Aliás, ela mesma detestava enquadramentos. Em qualquer que fosse sua escrita: romance, conto, crônica, sua ficção tinha um estilo pessoal e delator. Tudo o que escreveu é perturbador - essa minha maior admiração por ela!
Ninguém mais sensível e aberto ao toque de nuances fica indiferente à sua escrita só aparentemente simples - porque na verdade, é recheada de filosofia e metafísica.

Fico aqui a contemplar essa "amizade", e a torcer para que as novas gerações também dêem as mãos a esta moça de perfil elegante que perpassa o tempo.

Adorei seu post.

Um beijo.

Katyuscia.

Unknown disse...

Dade Amorim,
gostei muito do teu texto porque é uma análise límpida de quem realmente conhece e sente a atmosféra de Clarice pela leitura atenta de sua obra. Diferente de tantos outros blogs onde a tônica é a tietagem de "possíveis leitores" de Clarice. O que nao deixa de ser válido.

Estou contigo quando vc diz: "conhecer é meio caminho para a amizade" Mesmo que a escritora seja falecida sua obra está viva entre nós, o que significa que ela também está. Pois Clarice era essência e obra juntas, talvez fossem tao a mesma coisa mais que nenhum outro escritor que conheço.
Porque entao nao dizer "amizade"?
É isso mesmo, e eu também sinto o mesmo: amizade por Clarice, oras.

Também gostei muito do que postou Katyuscia.
Beijos para ambas.

Anônimo disse...

Toda vez que leio um texto de Clarice, parece que estou descobrindo coisas que existem dentro de mim sem que tivesse me dado conta. Acho que é isso que encanta ou afasta as pessoas. Nem sempre é agradável descobrir alguma coisa própria mas surpreendente, é um pouco como se descobríssemos em nós uma incompetência, que afinal outra pessoa superou - uma conquista que não foi minha, apesar de falar de mim.

Confuso?

Desculpe, Dade, mas é assim que percebo os textos dessa escritora, e acho que foi por isso que alguns a consideraram bruxa, com o que nunca concordei.

Um beijo

Ana Luísa

Gerana Damulakis disse...

Seus textos, ah, seus textos, dade: puro prazer! E escrevendo sobre Clarice... casamento perfeito.
"Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador". CL (bem aqui, emoldurado na minha frente, bastando erguer os olhos do teclado).

Anônimo disse...

Dade, concordo inteiramente com essa passagem do seu texto:

"Quando se fica conhecendo muito a vida de alguém, principalmente se esse alguém fez coisas que a gente admira, acaba-se ficando amigo dessa pessoa, o que é melhor do que idealizar e venerar à distância"

Sinto isso em relação a muitos artistas e filósofos.

Quanto a Clarice Lispector, devo dizer que não sou um de seus melhores leitores. Talvez eu seja um daqueles pragmáticos mórbidos a que você se refere,hehehe...

Um abraço!

Maira Parula disse...

muito boa tua análise, menina. passei aqui para te deixar um beijo e vejo vc falando desta louca. rs. clarice é mestre. incomoda. eu brigo com ela. há coisas de que não gosto, e outras que me desmancham. um gênio. nas entrevistas do youtube, eu choro. estou com ela de A a Z. sem mais o que dizer. grande abraço

Gerana Damulakis disse...

Pois é, temos o mesmo Carlos Scliar de Clarice com a frase dela abaixo do retrato. Temos mais ainda em comum.

Non je ne regrette rien: Ediney Santana disse...

Lispector, como não gostá-la?
A Canção do Caetano e creio do Capinam é muito perto dela, a canção é Clarice, muito bela e cheia de mistérios como a própria

O Neto do Herculano disse...

Humildade
e amor a palavra
ainda são
as matérias primas
do leitor de Clarice.

jurisdrops disse...

Dade:
Que maravilha de análise! Sou fã de Clarice, da Macabéa enferrujada, ávida por goiabada com queijo. Ela traduz mesmo nossos mais íntimos desejos e consegue devassar nossas angústias, como se as conhecesse. E você traduziu perfeitamente como tudo isso acontece. Bjos

Barbara disse...

Não sou capaz de comentar Clarice.
Apenas a desfruto, sorvo, bebo e amo.

ALUISIO CAVALCANTE JR disse...

Amiga.

Falar ao coração é uma tarefa árdua.
Mas somos humanos e sonhadores e assim precisamos seguir pela vida semeando poemas, histórias e palavras.
Assim como Clarice não nos falta a inspiração, e acredito que conseguiremos realizar este sonho.

Lindo final de semana para ti.

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) disse...

Dade,
Lendo(ouvindo) seu texto sob/sobre Clarice, penso que nenhum coração terá mais idade para usar colete a prova de emoções...
Bendigo sua amizade com la Lispector...
Em o ler, às vezes deliro ser um heterônimo do Pessoa (que ressoa uma religião tão boa em mim)...

Comovido aqui,
Pedro Ramúcio.

Laura Ferreira disse...

E eu assino em baixo! Obrigada pela visita ao meu cantinho.