A
ciência, a filosofia e qualquer outro ramo de saber demoram anos e décadas para
conseguir avançar em suas conquistas. Nem sempre se percebe de início o lado
útil e pragmático de uma descoberta. Um pesquisador e um estudioso têm que ser
antes de tudo pessoas pacientes, de uma persistência acima da média. Há dados
intermediários, dos quais dependem outros e outros. Há dados enganosos, que fazem
perder tempo ou invalidam conquistas anteriores. A vocação da pesquisa é árdua
e exige dedicação integral.
Dedicação no entanto subentende outros aspectos dessa maratona. É preciso antes de tudo que haja motivos de ordem subjetiva bastante fortes, que haja prazer no que se faz. Não é
novidade. Em qualquer área de atividade humana, a busca da perfeição envolve satisfação e bem-estar que justifiquem infindáveis horas de
trabalho e até, como no caso dos Curie - ou do Aleijadinho, em outra área - sacrifícios físicos que no entanto não os impediram de trabalhar sem esmorecimento. Esses motivos constituem o próprio impulso, a razão de alguém
se lançar pelo caminho das pedras rumo a um resultado.
Explicar
esse impulso é tarefa temerária. Freud o atribui à busca de satisfazer pulsões
que, de outro modo, poderiam responder por comportamentos desastrosos do ponto
de vista social. Dá a esse fenômeno o nome de sublimação, às vezes interpretado
como a procura da perfeição ou do sublime no sentido do belo. Na verdade, hoje
se acredita que o processo não envolve necessariamente essa intenção, mas
apenas dá uma utilização digamos produtiva à satisfação das pulsões inconscientes.
Gaston
Bachelard vê, na origem do
interesse pela pesquisa e investigação científicas, a imaginação, o sonho, o devaneio. A visão dele tem a ver
com a primitiva explicação de Freud, embora a localize em sua própria área de
trabalho, sem fixar sua origem e sem a generalização feita pelo pai da
psicanálise. Para Bachelard, isso se explica porque toda hipótese responsável
por uma pesquisa está enraizada no processo criativo e livre pelo qual se
imagina ou fantasia alguma coisa.
Existe
até uma teoria, defendida por Jean Rancière e alguns adeptos ilustres, que
explica o aprendizado como exercício do desejo do aprendiz e não como uma
distribuição fragmentária do saber maior de um mestre por seus alunos, como
acredita a visão tradicional da pedagogia. O livro de Rancière chama-se O mestre ignorante, onde o autor conta o
episódio de um mestre que apenas orientou – não “ensinou” – os
estudantes para que aprendessem outro idioma e pudessem compreender ideias que
ele próprio não dominava de todo. Pensando bem, faz sentido, já que o maior
obstáculo ao aprendizado é o desinteresse do aluno.
Uma
outra face da questão está em que, em qualquer disciplina, o saber ético visa
sempre explicar e/ou mudar a vida das pessoas para melhor. Se não for assim, é
um saber que vira a cara à realidade. Pode produzir apostilas, ensaios,
monografias, livros e artigos em publicações especializadas, anais de
congressos e seminários. Se ninguém no entanto precisar desses dados para
melhor compreender alguma coisa que tenha cheiro de gente e seus correlatos,
eles serão certamente consumidos pelo fogo frio da inutilidade que arde em
milhares de estantes, bibliotecas e depósitos de papel esquecidos pelo mundo.
No pior dos casos, podem mesmo servir a ideologias destruidoras e mesquinhas,
como a teoria posta a serviço da inexistente superioridade genética de certas
“raças” humanas.
Ao contrário do que
imaginam os desavisados, o verdadeiro saber não pretende ser instrumento de
poder para poucos, não é arrogante e não exclui ninguém de seus benefícios. Quanto
mais se domina um ou vários assuntos, mais claro se percebe a fragilidade
humana e a finitude da qual ninguém escapa. O prazer que o conhecimento
propicia é íntimo, simples e irresistível. Muito parecido com uma paixão, ele
aquece e faz caminhar, leva sempre a quebrar limites, estende para mais longe o
horizonte e dá
novas razões de viver. Títulos e diplomas podem existir para efeito
externo, podem ser úteis para a vida profissional, mas provam muito pouco.
Fundamentalmente, o conhecimento é uma luz sempre acesa, a certeza de um
sentido para a vida, uma garantia de não estagnação.
9 comentários:
É verdade, Dade (rimou!), o conhecimento nasce de uma fagulha do coração e da mente, como a paixão ou as mirangens. Mesma natureza. Agora, o uso que muitas vezes se faz do conhecimento é de lascar, né não? Muito mal distribuído nas sociedades e, muitas vezes, ao ser repassado, tiram-lhe a fagulha, a imaginação, deixando apenas o lado enfadonho... que o afasta, da sua própria natureza e das pessoas.
Sempre é uma alegria quando chego aqui e encontro um texto novo. Qualquer assunto é tratado com um estilo que resulta em prazer.
Gosto demais de ler seus textos.
Extraordinário. Gostei muito da tese e da forma inteligente, como é comum nas suas explicitações,de descreve-la. Somente sugiro acrescentar, como diria Paulo Freire, que o conhecimento, a maior riqueza do homem e que nunca lhe pode ser subtraida, surge SEMPRE da relação entre as pessoas e dela nascem as idéias compartilhadas. Fá.
Vim aqui parar via Biografia de Adair Junior.Fiquei um pouco,li e gostei o suficiente para me fazer sua seguidora.Voltarei com certeza.
1 abraço
Olá !!!
Sua análise a respeito de como se dá o conhecimento é excelente. A vida e o mundo se nos mostra de tal forma que nos deixa desconcertados. Triste é quando alguns, numa tentativa de controle, se arvoram senhores do saber, com seus pequenos poderes acadêmicos (enquanto)cercados de alguns poucos "puxa-sacos"!!!
Bachelard é da pesada!!!!!
movimento, sempre.
Dade:
Voltei a reler este post e houve 3 segmentos do mesmo que me ficaram a martelar:
1- A teroria tão actual do Jean Rancière (e de alguns adeptos ilustres, nos dias de hoje, com a massificação do ensino e da escola.
2.A questão do saber ético, que forçosamente, visa sempre explicar e/ou mudar a vida das pessoas para melhor porque caso isso não aconteça é um saber "inútil".
3-"Títulos e diplomas podem existir para efeito externo, podem ser úteis para a vida profissional, mas provam muito pouco" e nós, aqui em Portugal, com a instituição das Novas Oportunidades, não tarda verificar-se-à que esses títulos e diplomas valem menos que nada(para mal de todos nós).
Um beijo amigo
Dade, vim dar uma voltinha aqui e me deparo com esse texto de temática complexa, mas tão fácil e gostoso de ler.
Tenho pensado muito nisso, no que impulsiona a gente, o que é afinal a felicidade e, quando vc fala do conhecimento como fonte de alegria, bateu muito com o que tenho matutado.
Muito legal, vou reler e levar comigo, como diz a Andrea.
Dade, curioso ler seu texto agora quase ao mesmo tempo em que leio um livro de trechos de uma obra de Schopenhauer que fala sobre conhecimento. Ele enfatiza justamente que o conhecimento está menos relacionado com a quantidade de informação que a pessoa tem do que com o que ela é capaz de construir de ideias próprias com as informações que possui. E isso só consegue quem busca o conhecimento real, e não títulos, reconhecimento, recompensas. Nasce da coragem e da determinação em construir uma verdade pessoal, baseada em ideias próprias. Enfim, belo texto!
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