sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A dinâmica do saber







A ciência, a filosofia e qualquer outro ramo de saber demoram anos e décadas para conseguir avançar em suas conquistas. Nem sempre se percebe de início o lado útil e pragmático de uma descoberta. Um pesquisador e um estudioso têm que ser antes de tudo pessoas pacientes, de uma persistência acima da média. Há dados intermediários, dos quais dependem outros e outros. Há dados enganosos, que fazem perder tempo ou invalidam conquistas anteriores. A vocação da pesquisa é árdua e exige dedicação integral.

Dedicação no entanto subentende outros aspectos dessa maratona. É preciso antes de tudo que haja motivos de ordem subjetiva bastante fortes, que haja prazer no que se faz. Não é novidade. Em qualquer área de atividade humana, a busca da perfeição envolve satisfação e bem-estar que justifiquem infindáveis horas de trabalho e até, como no caso dos Curie - ou do Aleijadinho, em outra área - sacrifícios físicos que no entanto não os impediram de trabalhar sem esmorecimento.  Esses motivos constituem o próprio impulso, a razão de alguém se lançar pelo caminho das pedras rumo a um resultado.

Explicar esse impulso é tarefa temerária. Freud o atribui à busca de satisfazer pulsões que, de outro modo, poderiam responder por comportamentos desastrosos do ponto de vista social. Dá a esse fenômeno o nome de sublimação, às vezes interpretado como a procura da perfeição ou do sublime no sentido do belo. Na verdade, hoje se acredita que o processo não envolve necessariamente essa intenção, mas apenas dá uma utilização digamos produtiva à satisfação das pulsões inconscientes.

Gaston Bachelard vê, na origem do interesse pela pesquisa e investigação científicas, a imaginação, o sonho, o devaneio. A visão dele tem a ver com a primitiva explicação de Freud, embora a localize em sua própria área de trabalho, sem fixar sua origem e sem a generalização feita pelo pai da psicanálise. Para Bachelard, isso se explica porque toda hipótese responsável por uma pesquisa está enraizada no processo criativo e livre pelo qual se imagina ou fantasia alguma coisa.

Existe até uma teoria, defendida por Jean Rancière e alguns adeptos ilustres, que explica o aprendizado como exercício do desejo do aprendiz e não como uma distribuição fragmentária do saber maior de um mestre por seus alunos, como acredita a visão tradicional da pedagogia. O livro de Rancière chama-se O mestre ignorante, onde o autor conta o episódio de um mestre que apenas orientou – não “ensinou” – os estudantes para que aprendessem outro idioma e pudessem compreender ideias que ele próprio não dominava de todo. Pensando bem, faz sentido, já que o maior obstáculo ao aprendizado é o desinteresse do aluno.  

Uma outra face da questão está em que, em qualquer disciplina, o saber ético visa sempre explicar e/ou mudar a vida das pessoas para melhor. Se não for assim, é um saber que vira a cara à realidade. Pode produzir apostilas, ensaios, monografias, livros e artigos em publicações especializadas, anais de congressos e seminários. Se ninguém no entanto precisar desses dados para melhor compreender alguma coisa que tenha cheiro de gente e seus correlatos, eles serão certamente consumidos pelo fogo frio da inutilidade que arde em milhares de estantes, bibliotecas e depósitos de papel esquecidos pelo mundo. No pior dos casos, podem mesmo servir a ideologias destruidoras e mesquinhas, como a teoria posta a serviço da inexistente superioridade genética de certas “raças” humanas.

Ao contrário do que imaginam os desavisados, o verdadeiro saber não pretende ser instrumento de poder para poucos, não é arrogante e não exclui ninguém de seus benefícios. Quanto mais se domina um ou vários assuntos, mais claro se percebe a fragilidade humana e a finitude da qual ninguém escapa. O prazer que o conhecimento propicia é íntimo, simples e irresistível. Muito parecido com uma paixão, ele aquece e faz caminhar, leva sempre a quebrar limites, estende para mais longe o horizonte e dá novas razões de viver.  Títulos e diplomas podem existir para efeito externo, podem ser úteis para a vida profissional, mas provam muito pouco. Fundamentalmente, o conhecimento é uma luz sempre acesa, a certeza de um sentido para a vida, uma garantia de não estagnação.





9 comentários:

Janaina Amado disse...

É verdade, Dade (rimou!), o conhecimento nasce de uma fagulha do coração e da mente, como a paixão ou as mirangens. Mesma natureza. Agora, o uso que muitas vezes se faz do conhecimento é de lascar, né não? Muito mal distribuído nas sociedades e, muitas vezes, ao ser repassado, tiram-lhe a fagulha, a imaginação, deixando apenas o lado enfadonho... que o afasta, da sua própria natureza e das pessoas.

Gerana Damulakis disse...

Sempre é uma alegria quando chego aqui e encontro um texto novo. Qualquer assunto é tratado com um estilo que resulta em prazer.
Gosto demais de ler seus textos.

Anônimo disse...

Extraordinário. Gostei muito da tese e da forma inteligente, como é comum nas suas explicitações,de descreve-la. Somente sugiro acrescentar, como diria Paulo Freire, que o conhecimento, a maior riqueza do homem e que nunca lhe pode ser subtraida, surge SEMPRE da relação entre as pessoas e dela nascem as idéias compartilhadas. Fá.

Em@ disse...

Vim aqui parar via Biografia de Adair Junior.Fiquei um pouco,li e gostei o suficiente para me fazer sua seguidora.Voltarei com certeza.
1 abraço

Celso Ramos disse...

Olá !!!
Sua análise a respeito de como se dá o conhecimento é excelente. A vida e o mundo se nos mostra de tal forma que nos deixa desconcertados. Triste é quando alguns, numa tentativa de controle, se arvoram senhores do saber, com seus pequenos poderes acadêmicos (enquanto)cercados de alguns poucos "puxa-sacos"!!!
Bachelard é da pesada!!!!!

douglas D. disse...

movimento, sempre.

Em@ disse...

Dade:
Voltei a reler este post e houve 3 segmentos do mesmo que me ficaram a martelar:
1- A teroria tão actual do Jean Rancière (e de alguns adeptos ilustres, nos dias de hoje, com a massificação do ensino e da escola.
2.A questão do saber ético, que forçosamente, visa sempre explicar e/ou mudar a vida das pessoas para melhor porque caso isso não aconteça é um saber "inútil".
3-"Títulos e diplomas podem existir para efeito externo, podem ser úteis para a vida profissional, mas provam muito pouco" e nós, aqui em Portugal, com a instituição das Novas Oportunidades, não tarda verificar-se-à que esses títulos e diplomas valem menos que nada(para mal de todos nós).

Um beijo amigo

Anônimo disse...

Dade, vim dar uma voltinha aqui e me deparo com esse texto de temática complexa, mas tão fácil e gostoso de ler.
Tenho pensado muito nisso, no que impulsiona a gente, o que é afinal a felicidade e, quando vc fala do conhecimento como fonte de alegria, bateu muito com o que tenho matutado.
Muito legal, vou reler e levar comigo, como diz a Andrea.

Carlos Augusto disse...

Dade, curioso ler seu texto agora quase ao mesmo tempo em que leio um livro de trechos de uma obra de Schopenhauer que fala sobre conhecimento. Ele enfatiza justamente que o conhecimento está menos relacionado com a quantidade de informação que a pessoa tem do que com o que ela é capaz de construir de ideias próprias com as informações que possui. E isso só consegue quem busca o conhecimento real, e não títulos, reconhecimento, recompensas. Nasce da coragem e da determinação em construir uma verdade pessoal, baseada em ideias próprias. Enfim, belo texto!