quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Papai Noel não existe




Imagem de Geraldine Georges



Há décadas figuras notáveis da filosofia se negam a reconhecer essa instância a que chamamos metafísica. Além das espantosas consequências de tal negativa sobre a história do pensamento, podemos dizer, a título de ilustração, que isso arranca as pretensões mais petulantes de nossas árvores genealógicas em suas raízes últimas (ou primeiras, dependendo de se você vai de cá pra lá ou vem de lá pra cá). Ficam em pé de igualdade os estratos mais díspares da sociedade humana.
Explicando melhor: se as pessoa são corpos sensíveis e se as diferenças individuais resultam de contingências racional e circunstancialmente explicáveis, nada justifica a (ainda) rigidez das castas e classes sociais baseada em poder financeiro ou privilégios em relação aos menos dotados. A única hierarquia possível se sustentaria então em superioridades extrínsecas e acidentais – diferentes graus de instrução, expertises técnicas e profissionais, que podem conferir alguma autoridade funcional a determinadas pessoas. Essa hierarquia não confere a ninguém direitos humanos diferentes dos consagrados e universais.
Já ouço o alarido dos protestos. São senhoras da mais antiga aristocracia rural, cavalheiros formados em Harvard, gente com antepassados ilustres e até pessoas simples, legalistas, conservadores, seres medianos sem culpa no cartório, que não podem admitir ser postos em pé de igualdade com gentinha da classe D. Sem falar em cintilantes emergentes carregando seus pets perfumados, seguidas de maridos algo embaraçados pela atitude beligerante das consortes.
Mas tenham ou não razão os teóricos da não-transcendência, não adianta espernear: viemos todos do mesmo buraco, da ameba original, da água e da célula primeva. A partir daí tiveram início evoluções e equívocos em desenfreada corrida. Parece que a sentença mítica do Éden foi mais ou menos assim: "Do caos viestes, para o caos retornareis", e desde então homens e mulheres se empenham em construir para destruir, mentir até para si mesmos, abandonar quem depende de sua proteção, amar à beira do ódio – não necessariamente nessa ordem, mas com uma frequência assustadora em todos os tempos e lugares. Às vezes a própria construção já começa sem qualquer prognóstico favorável, como aconteceu com a torre de Babel e os prédios do Sérgio Naya, lembram dele?
Espécime ambíguo e pouco confiável que é o ser humano. Investimos recursos incomensuráveis para fazer a guerra – que é o jeito oficial e socialmente aprovado de dar vazão à fera que vive em nós. Os fora-da-lei apostam a vida – e de um modo ou de outro a perdem – no jogo da violência e da força bruta; outros, como os políticos desprezíveis e os servidores públicos de mau caráter que conhecemos tão bem, usam os cantos menos claros da lei para arquitetar golpes milionários, enquanto falta o mínimo para que tantos possam viver com decência. Quantas maneiras existem de matar?
Parece bem verdadeiro que o coração não se perturba com o que os olhos não veem. As equipes econômicas trabalham com abstrações e eternos métodos de ensaio-e-erro, dando seu jeito de fugir ao óbvio com ar de quem sabe tudo. Seus saberes passam ao largo das necessidades primárias de dar de comer a quem tem fome ou criar condições que facilitem a todas as camadas da sociedade o acesso a uma vida digna. Interesses mais altos se alevantam, e além disso existe esse ser metafórico e mutante a que chamamos mercado – álibi perfeito para legitimar a ganância dos mais fortes.
Enquanto isso – com a cabeça ainda povoada de transcendências esgarçadas – a gente cria programas inócuos de nomes tocantes, campanhas de efeito fugaz e abraça o Pão de Açúcar invocando a paz. Como se a paz fosse um orixá e não um estado de espírito. Ou então desloca a atenção para assuntos supostamente divertidos, como os atores ruins e os quartos da casa do bbb, quem vai posar para a decrépita Playboy ou o último namorado adolescente da atriz de 65.
Mas afinal, quem somos? Será que von Trier foi pessimista demais quando construiu sua Dogville?


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Nada disso impede que a gente deseje um final de ano com alegrias, um 2010 de bons acontecimentos e - por que não? - que cresça o número de nossos amigos e que o amor nos traga paz e longas amostras de felicidade. Porque, mesmo capaz de tanta aleivosia, gente ainda é o que há de melhor no mundo.

6 comentários:

Fred Matos disse...

Adelaide,
Não obstante a minha implicância com o uso comercial do "espírito natalino", não tenho como escapar da influência que a data exerce sobre o meu emocional que ainda teima em crer que a humanidade não é caso perdido e que podemos construir um mundo mais justo, sem violências e sem preconceitos. Em suma: sou um ingênuo assumido.
Sendo assim, é inevitável que venha para deixar os meus votos sinceros de que você tenha um feliz natal e que o ano novo não seja apenas uma nova página no calendário, mais um marco de mudança que inaugure uma nova era de paz e felicidades para todos e que possamos realizar todos os nossos melhores sonhos e projetos.
Felicidades.
Beijos.

PS: Entre outras coisas o natal, nem sei porquê, de dá uma imensa saudades da nossa amiga Li.

Barbara disse...

Quero te contar uma coisa: Conheço um homem, muuuuiiiito "bem nascido" mas que as contingências da vida ou dele mesmo , fizeram com que acabasse morando no "Abrigão"- que é onde os sem teto comem e dormem por aqui. Por 8 anos.
Este homem fala 11 idiomas, estudou curso superior nos Estados Unidos e ninguém nunca entendeu como ele se adaptava a tal realidade.
Realidade nada! Ano passado ele fez uma oração de inspiração tibetana de umas 3 páginas - lindíssima! Logo em março foi diagnosticado com cancer e enviado prá um hospital onde as pessoas simplesmente esperam prá morrer.
Pois depois de quimio, radio mas principalmente de uma força espiritual inimaginável, ele está curado, sendo que nunca sentiu os efeitos do tratamento.
Ligou-me no último dia 22, disposto e já com uma perspectiva diferente .
O irmão o sustentará por uns tempos , ele vai arranjar um quarto prá morar , e ainda no hospital, onde mesmo na fase mais crítica da doença, deu aulas de ingles e frances pros médicos, e fez-se o sem teto intelectual mais famoso do ambiente que é enorme.
Mas antes de tudo, ou, por trás de todas as vivências que o levaram a uma vida "à margem",vida que ele experimentou por mais de 12 anos, havia um "Ser" real nele que permitiu que suportasse o insuportável de ser "mendigo" , que o levou a uma realidade diferente mas que já estava nele - a realidade do "SER REAL".
Quero agradecer pela sua postagem e desejar Boa Sorte.

Anônimo disse...

Sim, von Trier estava certo.
Ainda assim, há esses momentos de calor humano verdadeiro que ainda vemos e nos autorizam a esperar por um mundo melhor.
Um ano de paz para todos nós
e de alegria e afeto para vocês,
é o que desejam
Enylton e Célia.

Gerana Damulakis disse...

Simplesmente adoro seus textos. Adoro entrar aqui e encontrar um texto, penso Oba!
Estamos com problemas com o blogspot, daí ter entrado menos.
Um ótimo 2010 para você!

Graça Pires disse...

Tenho que voltar aqui para ler o seu texto com mais atenção e pensar sobre ele...
Para já desejo um ano de 2010 muito Bom.
Beijos.

Celso Ramos disse...

Olá !!!!
Oh!Dade, quero te agradecer pelo comentário em meu blog...você é realmente muito delicada, que Deus te abençoe, valeu?
É... Dogville é um soco no estomago, assim como ensaio sobre a cegueira, me parece estar no mesmo patamar de lucidez sobre o gênero humano.
Ainda tenho esperanças ..não no homem, mas em Deus!!!!A filosofia é bacana mas o mistério é Maior!!!