terça-feira, 22 de setembro de 2009

Minotauro

Picasso. Minotauro acariciando mulher adormecida.



Coca-cola no almoço, mate na hora do lanche e cafezinho de vez em quando pela tarde a dentro – e eis-me aqui, indormida e taquicárdica, desiludida de contar carneirinhos, porque eles dormem antes de mim. O que mais passa por minha cabeça são os restos do dia, uma espuma que lambe todos os pensamentos e seus espaços vazios. Dos dias, hoje e outros dias que já nem sei quais. Imaginações espiando as lembranças, misturando-se a elas como espiões, X-9 da memória, e de repente vem à cena a gaiola das obsessões, grades de cobre, fria e bem polida, que guardo bem escondida no quarto da área de serviço.


No meio da noite insone, a gaiola automaticamente se converte em ante-sala de todos os medos e sustos. Minhas paredes brancas, neutras na treva, se cobrem de nomes, palavras de ordem. Não esquecer, lembrar sempre, não deixar. Acima de tudo não deixar. Manter acesas todas as luzes da memória, vigiar e nunca orar. Orar pode ser fatal, pode tirar a atenção do que realmente importa. Orar não é eficaz, e eficácia é a maior das hodiernas palavras de ordem. Persistir, levar a sério, não relaxar. Vestir a camisa – uma expressão que me dá sempre a sensação de estar sentindo um cheiro de sovaco na dita. Estar desperto e nunca esquecer de nada. A meu lado na mesinha a lista das compras: na certa não anotei o papel-toalha nem o fio de náilon. Passo metade da noite perseguindo meus pequenos nadas.


Pelo jeito, nunca mais vou dormir. Estarei exaurida de manhã, incapacitada para levar a sério o que quer que seja, em especial o exercício e o alongamento, sem os quais, como ninguém ignora, a gente envelhece do dia para a noite, e o que será de mim na outra noite, insone e centenária?


O sono não cabe numa vida em que a atividade é condição primeira. O sono é a morte provisória do espírito, esse princípio duvidoso e incendiário que me habita como um miceno em Creta. Minos a dominar meus mares. A noite é meu labirinto, a insônia o Minotauro que procuro manter distante por um ardil, uma estratégia que me mantém alerta. Meus argumentos não são suficientes para aplacá-lo. Ofereço a ele minhas donzelas e meus mancebos, não vá o monstro extravasar sua ira a outros domínios do dia.


Amanhã vai ser outro dia e não há como prever as conseqüências disso. Se conseguir me manter do lado de fora da gaiola dos medos, talvez ainda haja salvação. Dentro é uma palavra plantada na rocha. É radical e inamovível. Dentro é imutável. Prefiro o lado de cá, um terreno pantanoso onde chapinho a maior parte do tempo. Fico mesmo acordada, paciência. Se não há outro jeito, vigio o Minotauro e lhe sirvo sua ração de virgens. Chego mesmo a conversar com ele, é bom de papo. Falamos do inefável. Quando ele some, esbarro nas paredes de chapisco do labirinto, que me ralam os dedos, os joelhos, às vezes o nariz. Aí fico bem quieta e ligo a televisão. Às vezes pintam filmes legais na madrugada.

7 comentários:

Unknown disse...

gostei muito!

Graça Pires disse...

Talvez venha Teseu com o fio de Ariadne para te libertar do labirinto, essa "gaiola das obsessões". Um belo texto.
Um beijo.

Anônimo disse...

Adelaide, o que dizer? Desde que leio este blog (e isso faz já algum tempinho) foi o mais belo texto que vi por aqui. Bonito. Bonito mesmo. Um abraço.

Barbara disse...

Dentro é uma palavra plantada na rocha.
Musgos são da ordem primitiva no mundo da botânica e nascem em rochas.
Dentro o primitivo.
Minotauro.
Só com a inocência ele cederá.
Seja um pouco mais criança e brinque com ele.
Não o sacie com virgens e mancebos porque quanto mais come mais quer.
O vício do domínio.
O domínio do Minotauro , só se estiver de bem com o primitivo dentro de você.
Talvez consiga um cobertor de musgos mas a palavra dentro que está plantada na rocha, pode ser o que procuras mas no seu mais primitivo aspecto.
Uma aventura e tanto, hein!
Mas quem disse que você não pode ser primitivamente inocente?

Janaina Amado disse...

Ih, Dade, pois eu durmo que nem uma pedra e... sonho com o Minotauro!
Olhe, passei o bem, o mal e também a coluna do meio para o acreditandonotruque, e acrescentei o umbigo do sonho ao enredosetramas. (Meu Deus, quem ler desavisado este parágrafo vai pensar que eu acabei de pirar... Mas vc. vai entender :-)
Abração.

Gerana Damulakis disse...

Senti muita identificação com o texto. Adorei a leitura.

Anônimo disse...

Tres intiresno, gracias