quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Sentar no chão



As crianças se encontram na pracinha e imediatamente entram em um grau de sintonia: se olham, trocam uma ou outra palavra, sorriem e começam a brincar. Nunca tinham se encontrado antes, mas o simples fato de serem do mesmo tamanho e adivinharem que gostam das mesmas coisas as identifica. Sentam juntas no chão, dão-se as mãos, riem, brincam e correm numa amizade instantânea.

Claro que os adultos não podem agir com a mesma espontaneidade. O que é uma pena, mas realmente não se recomenda. A comunicação entre eles não é tão fácil, a vida já lhes ensinou que é preciso desconfiar de um estranho, muito embora saibam que algumas coisas continuam a ser comuns a todos.

Mas perder a espontaneidade da infância não é motivo para hostilizar o outro. O famoso benefício da dúvida pode ir além de uma atitude forçada e politicamente correta, para admitir um gesto exterior de atenção e um gesto interior de certa boa vontade. Para um adulto, sentar no chão com o outro equivale a acolhê-lo de maneira civilizada e reconhecer nele um semelhante.

As sementes da intolerância se alastram muito mais depressa quando se vive sem dar atenção aos outros, ingorando ou menosprezando quem está a nossa volta. Nada bom para o mundo e as pessoas, porque é dessas sementes que brotam as guerras, os ódios que vêm para ficar e a violência de todas as formas.

Não que todo mundo deva virar madre Teresa de Calcutá, um ideal para poucos. Falo de uma solidariedade pequenininha mas sempre presente, imediata, do dia-a-dia, que se dirige ao vizinho, ao irmão dentro de casa, ao marido ou à mulher, aos filhos, a quem passa por nós e viaja em nossa condução. Uma solidariedade que vê mais longe do que a roupa que o outro veste ou sua condição social.

Empatia, estar alerta ao que o outro diz e faz – ou seja, ser capaz de demonstrar compreensão desarmada. Conviver sem a pretensão prévia de julgar ou se defender a priori, como se o outro fosse sempre o inimigo em potencial. Não é tão fácil quanto parece, mas é possível, mesmo sem ignorar os sinais reais de perigo que nos cercam nas cidades e aos quais também é preciso estar alerta.

Talvez ser feliz dependa de saber acolher e ser acolhido em qualquer situação. É preciso ter a noção do que um gesto de simpatia pode conseguir: relaxa, desarma, cria um clima favorável ao entendimento. É preciso ter espaço interior de manobra para deixar espaço para os outros, e o grande mal do mundo (que não nasceu hoje, mas está atingindo uma tensão insuportável) é uma intolerância que nasce exatamente do não-entender, e mais ainda do não querer entender nem se identificar com algum traço de quem está diante de nós – e que no entanto é também uma pessoa de nossa mesma espécie, noves fora as diferenças individuais.

Cordialidade e delicadeza não fazem mal a ninguém, nem são sinais de fraqueza. São sinais apenas de boa vontade e compreensão. Mas para isso é preciso entender que cada vida está ligada às vidas do mundo todo, perceber o significado da generosidade não como uma virtude que torna alguém superior aos demais, mas uma decorrência da precariedade de cada um.

7 comentários:

Graça Pires disse...

"Talvez ser feliz dependa de saber acolher e ser acolhido em qualquer situação"
Gostei imenso deste texto sobre a tolerância. E fiquei com saudades da infância e da inocência...
Um beijo.

Huckleberry Friend disse...

Deliciosa a espontaneidade das crianças. Vou experimentá-la em breve, pois espero o meu primeiro filho. Deixo um beijo e um convite para o primeiro aniversário do meu blogue. Até breve!

Anônimo disse...

Adorei o seu texto e sua reflexão. Parece muito com o que penso da vida. Obrigada por ter visitado o meu blog por que me deua opotunidade de vir conhecer o seu. Me reconheci aqui nesse espaço. Vou ler mais.
Beijos,
Cam

Iara Maria Carvalho disse...

Ser feliz implica abolir maniqueísmos, destruir convenções...nem que sejam as mais radicais!

um prazer te ter em minha Janela!

abraços poéticos!

Cris disse...

Legal, Adelaide...

Você reparou que o grande erro da humanidade é levar para a idade madura algumas coisas da infância que não tem nada a ver - como birra, falta de compreensão, imediatismo - e deixar outra legais para trás, como a espontâneidade , por exemplo?

Beijão, querida. Bom fim de semana.

Janaina Amado disse...

Eu gostaria, sim, de recuperar a espontaneidade da infância. Quando viro criança, tudo dá certo.
Parabéns pelo texto.

Marcelo F. Carvalho disse...

Tô contigo Adê, mas devo admitir que, às vezes, fico meio embicado com o mundo... Pena pra mim...
Abraços!