sábado, 10 de maio de 2008
Querida mamãe
Quando resolvemos casar, Dilo e eu sabíamos que nossa vida em comum não seria como a da maior parte dos casais que conhecemos. Não conseguimos imaginar um dia-a-dia de renúncias e submissões, sempre lutando contra para conseguir levar a vida adiante. A gente quer lutar a favor. Já chegam as obrigações de trabalho, as horas marcadas e o corre-corre para comer o tal pão com o suor do rosto (argh!). Por isso combinamos que nossa casa tem que ser arejada, alegre e cheia de sol. Onde cada dia seja realmente novo, onde haja lugar para surpresas e improvisos. No que depender de nós, queremos dar sempre alegria e bem-estar um ao outro.
Para começar, separamos um quarto para o amor e o resto da casa ficou para a amizade, o companheirismo e a solidão, quando der na telha de um ficar sozinho (às vezes é muito preciso, pode acreditar). No quarto, a condição é não duvidar de nada e confiar sempre. Temos uma comunhão universal de propósitos, e a felicidade veio morar com a gente e não parece disposta a mudar de endereço. Cada um diz ao outro as coisas de modo natural e nunca, nunca mesmo, faz com que ele se sinta desrespeitado. E acredita em tudo que o outro disser. Cumplicidade completa.
Não é invenção do machista da dupla, planejando me passar pra trás e pular a cerca sem conseqüências. A maioria das mulheres ainda pensa assim. O trato vale para os dois do mesmo jeitinho. Queremos ficar juntos, é tudo que mais queremos nesse mundo. Mas se entre nós se interpõe a vida com suas exigências inesperadas, somos realistas o suficiente para entender que não há como lhe resistir. A vida é sempre mais forte. Um dia ela nos pega pelo pé. É uma decisão nossa, e pode acreditar que não há cinismo em pensar desse jeito. Não é o que chamam “casamento aberto”, porque não há propósitos. Fizemos um pacto: as coisas têm que acontecer espontaneamente. Eu sei que é difícil de acreditar. Mas enquanto o outro quiser ser acreditado, é sinal de que não desistiu do grande encontro, da cumplicidade total nem do segredo nem de nada. Isso é o que vale para o amor – que a gente ainda se queira acima de todo o resto, seja lá o que for, que cuide um do outro como a coisa mais importante do mundo. Que o amor seja do tipo que traz também amizade e confiança. A gente só acredita em casamento se for desse jeito.
Pode pintar ciúme, faz parte da coisa toda. Não é proibido, é até um bom sinal. Mas não pode ficar solto feito bicho brabo. É parte da gente, tem que ser tratado com carinho pelos dois como um aliado que vai nos levar à reconciliação (quer coisa mais gostosa que se reconciliar?). Depois, não é proibido brigar. É mesmo impossível não brigar nunca, já que, por mais cúmplices, somos dois. Se a gente não tivesse a liberdade de brigar, ia acabar numa camisa-de-força se odiando. Mas está implícito que a liberdade deve valer em todos os casos, e se acontecer o que agora nos parece impossível, mas a experiência diz que pode acontecer – o amor ficar doente ou até morrer – o carinho não morre. É uma delícia saber que, aconteça o que acontecer, seremos sempre amigos, cúmplices e se possível confidentes. Grandes amigos, leais por toda vida.
Quanto ao cotidiano, acontece justamente o contrário: é preciso duvidar sempre, manter as inadequações funcionando e garantir um mínimo de diversão no dia-a-dia. Não creio por exemplo que ele seja capaz consertar o banco do jardim, e faço questão que ele saiba disso. Deixarei que experimente o martelo e os pregos, mergulharei ternamente seus dedos inchados em gelo e, se o pior acontecer, bem humorados jogaremos fora o banco de ripas quebradas que nos terá rendido uma boa história para a próxima reunião com os amigos. Ele não levará a sério minhas tentativas de conseguir um suflê mais leve que o de sua tia Aurora, mas há de prová-lo com gula – e pode rir de mim se eu perder a aposta, porque depois a gente vai se beijar. Seguiremos pelo dia-a-dia fazendo tudo que desejamos sem abrir mão do direito de errar, experimentar e tentar de novo. Caroços no mingau, infiltações no teto, arranhões no carro novo, tudo será superado, mesmo que seja irritante – irritação libera adrenalina, e adrenalina é ótimo pra viver.
Nos casos críticos, como mágoas ou decepções, o segredo maior está em deixar a discussão para três dias depois – passado portanto o momento cabeça-quente, motivo maior das querelas fatais. Depois de frios, os fatos mais desagradáveis podem render boas piadas e se tornar estimulantes. Mas quando não for possível deixar de brigar, se a adrenalina transbordar e invadir o sangue como fogo na pólvora, brigaremos pra valer. Sem agressão física, é claro, mas com licença para exercer raiva explícita e atuante, valendo até quebrar jarras ou copos (menos os do jogo de cristal). Ao contrário do que possam imaginar, tais crises funcionam como poderoso afrodisíaco.
Sabe, mãe, a gente quer se amar, porque é bom demais, e vamos tentar levar adiante nosso plano de vida. Querer reduzir o outro a si mesmo pode estragar tudo. Nossa casa tem que ter espaço para cada um do jeito que é.
Não contamos a ninguém nosso segredo, mas afinal você é nossa melhor amiga e merece partilhar dessa felicidade que inventamos. Isso vai tornar você a mãe bem-amada de um casal feliz.
Muitos beijos e todo o carinho de seus filhos
Lulu e Dilo
PS: Sei que você está pensando em como vão ficar as coisas quando tivermos filhos (que nós queremos e você também, não pense que me engana!). Por enquanto só podemos dizer que tudo que desejamos para eles é que aprendam a amar com a gente. O resto se ajeita. Santo Agostinho disse “ama e faze o que quiseres”, não disse?
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6 comentários:
Delícia de texto. Um presente pra deixar qualquer mais pulando de alegria.
Um dia de paz pra você, Adelaide.
Grande beijo.
Na vida real, vivida, seria uma maravilha. Na ficção, é possível, mas complicado. Mas a última coisa a que devemos renunciar são as tentativas de fazer acontecer.
É o que todos nós queremos: felicidade pros filhos! O resto se ajeita.
Abraço forte!
Oi, linda...
Uma escapada no afastamento, um bom motivo: aniversário do pai.Aproveitei e vim te ler...humpf!rsrs
beijão.
bom, muito muito bom!!
Adorei o texto, delicioso!
Beijos beijos,
Melina
(www.euescrevendo.blogger.com.br)
Que texto delicioso de uma realidade que sonhamos sempre possível. Vou reler!
um beijo
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