quinta-feira, 1 de maio de 2008

Desigualdade ou emancipação?



Jacques Rancière. O mestre ignorante. Cinco lições sobre a emancipação intelectual. 2ed. Trad. Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. 192p.

Partindo de uma experiência insólita em sua longa carreira de pedagogo, Joseph Jacotot, professor francês do início do século XIX, apercebeu-se de que o processo de aprendizagem pode não consistir naquilo em que o senso comum e a teoria então vigente (e vigente até hoje, temos que reconhecer) haviam consagrado. O que Rancière denomina de “aventura intelectual” aconteceu-lhe quando, exilado por motivos políticos nos Países-Baixos, Jacotot ocupava o posto de leitor de literatura francesa em meio período. Ignorando o holandês, o mestre não teria como responder às dúvidas de seus alunos sem que alguma coisa em comum o ligasse a eles como canal de comunicação eficiente o bastante. Esse canal se apresentou sob a forma de um livro – o Telêmaco em edição bilíngüe publicada em Bruxelas. Por meio de um intérprete, ele indicou o livro aos estudantes, recomendando que aprendessem, com o auxílio da tradução, o texto francês.

“Quando eles haviam atingido a metade do livro primeiro, mandou dizer-lhes que repetissem sem parar o que haviam aprendido e, quanto ao resto, que se contentassem em lê-lo para poder narrá-lo. Era uma solução de improviso, mas também, em pequena escala, uma experiência filosófica, no gosto daquelas tão apreciadas no Século das Luzes. E Joseph Jacotot, em 1818, permanecia um homem do século passado.”

Esperando um resultado desastroso, o mestre pediu então aos alunos que escrevessem em francês o que achavam do texto lido. Era uma avaliação necessária da experiência totalmente empírica imposta pelo acaso. A surpresa no entanto foi das melhores: “seus alunos, abandonados a si mesmos, se haviam saído tão bem dessa difícil situação quanto o fariam muitos franceses”. Constatou que haviam sido capazes de entender o texto e com isso aprender francês o bastante para escrever na nova língua sobre o que haviam lido.

A experiência, capaz de revolucionar seu espírito, levou o pedagogo a desenvolver uma reflexão crítica sobre qual seria de fato a grande tarefa dos mestres. A conclusão a que chegou constitui a heterodoxa teoria, inaceitável para a época, de que ensinar à maneira tradicional – um mestre que “sabe” liberando frações de seu saber para alunos ignorantes – é perpetuar a distância que faz da sociedade (e da escola, seu símbolo) um lugar estruturado em torno de fossos intransponíveis a separar mestre e aluno, quem sabe mais e quem sabe menos, quem manda e quem obedece, quem tem mais ou menos poder. Em resumo: os “melhores da turma” sempre deteriam o poder e a regência dos outros, os que ignoram, os que não conseguiram ser bem-sucedidos e nunca chegariam a sê-lo se não lhes ocorresse o “clique” que permite o acesso a sua verdade mais subjetiva, onde se encontra a fonte dos melhores recursos e o caminho aberto às aptidões intelectuais de cada um.

O esforço para seguir os passos do mestre e assim transpor a distância que separa o aluno dele é um enganoso método de progresso pessoal, segundo o ponto de vista de Jacotot. Porque esse esforço roubará dos discípulos a energia e a espontaneidade de que necessitam para descobrir por si mesmos o que convencionalmente aprendem a ver com os olhos de outros, acumulando saberes parcelados, muitas vezes impossíveis de reter. A experiência era de ordem cartesiana: teria que envolver mais que informações acumuladas. O exercício da curiosidade natural e a vontade genuína de conhecer suprem métodos sofisticados e elaborados que chegam de fora, pelo pensamento arbitrário dos que detêm o poder de ensinar.

A esse processo espontâneo de aprendizagem, Jacotot atribui como resultado um saber que é necessariamente também conhecimento, no sentido de que aquilo que assim se aprende é compreendido e incorporado a um acervo pessoal sob a forma de experiência vivida e indelével.

Por essa e outras razões conexas, Rancière percorre propositadamente um conjunto de atalhos e caminhos que examinam a teoria pedagógica convencional. Sem utilizar conceitos consagrados ou idéias que são pontos pacíficos para os defensores da escola que conhecemos, busca em cada capítulo e em cada item do livro revisitar o processo de aprendizagem com a liberdade de quem descobriu uma nova vertente. A novidade era abolir-se a noção segundo a qual “há seres inferiores e superiores; os inferiores não podem o que podem os superiores”. Essa “hierarquia das inteligências” perpetuaria as desigualdades que beneficiam os detentores do poder.

“Não há inteligência onde há uma agregação, ligadura de um espírito a outro espírito. Há inteligência ali onde cada um age, narra o que ele fez e fornece os meios de verificação da realidade de sua ação.”

A veracidade está no cerne dessa experiência. Assim, é a experiência de cada um – que ele chama “seu próprio negócio” – que o levará ao conhecimento. Um pai ignorante pode levar o filho a adquirir conhecimento, contanto que dê a ele a oportunidade de descobrir por si só esse conhecimento, não como “um pedagogo gentil”, mas como “um mestre intratável” que levará o filho a querer se emancipar. Para isso, todas as faculdades são chamadas: atenção, determinação, persistência, curiosidade. Quando alguém efetivamente aprende alguma coisa, aprende porque quer aprender; e para isso está acima de tudo sozinho, interessado e entregue a sua experiência. Ele quer “adivinhar”, está atento aos indícios e à tradução do que lê, do que vê e analisa.

O traço socrático dessa atitude é bem visível: na base de tudo está o “conhece-te a ti mesmo”. Assim como no caso de Sócrates, que a seu tempo deu origem a uma escola com reflexos políticos em seu meio, o Ensino Universal, como foi chamado mais tarde o pensamento gerado pela aventura intelectual de Jacotot, não conseguiria manter sua força original. Mas na verdade, jamais morreria.

3 comentários:

Anônimo disse...

É, Adelaide, você foi direto ao centro da questão: os maiores problemas do pensamento pedagógico tradicional residem no fato de poucos admitirem abertamente que a educação formal, em essência, nada mais é que um jogo de poder. E saber equilibrar as coisas é uma das tarefas mais árduas dos educadores.

Taí, mais um livro pra eu colocar na minha lista de "COMPRAS URGENTES". Um abraço.

devaneiosaovento disse...

Adelaide, agradeço pela interação,
Jacques Rancière, um intelectual que merece ser lido e relido,(achei interessante a maneira que foi abordado um tema tão complexo que é aprendizagem)

abraços

Marcelo F. Carvalho disse...

Esse "formalismo" educacional é o grande monstro da escola que prima pelo tradicionalismo. Infelizmente, não vejo muita luz nesse túnel...
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Abraço forte!