quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Rio X Havana: qualquer semelhança é mera pobreza


Havana, 1995.

Nunca fui a Havana. Fechando os olhos, vejo um pequeno ponto num horizonte inconcluso, meio embaçado. É uma terra que de longe brilha e promete. Ou será um espelho? Percebo um clima familiar, cenários que bem poderiam ser os meus. Além disso, as promessas de um grande futuro são velhas conhecidas nossas. De perto não sei como será. Conheço gente que foi e amou, quer voltar e só fala bem. Conheço gente que foi e se desapontou. As gentes se desentendem sobre o assunto, argumentam com a veia do pescoço saltada. Torno a fechar os olhos.

Viajando desse jeito penso nos trens decadentes e parcos, ônibus que línguas maldosas apelidaram de aspirina, porque, dizem, aparecem para aliviar as dores de cabeça de longas esperas. Escolheria na certa um táxi, não tão caro, de motorista amigável, sensível a uma barganha e habituado às agruras da vida, querendo ser útil a qualquer preço, ou talvez a um precinho mais lucrativo, se conseguir me empurrar um de seus artigos clandestinos. Seria talvez leniente com ele, experiência não me falta. Além do que ouço dizer que os riscos de um transgressor havanês são maiores que os de transgressores que conheço mais de perto. E que, apesar disso, o irresistível jeitinho sempre funciona e até pode se tornar uma ameaça séria no caso clássico da combinação otário/cambista.

É uma ilha – não a imensa de Santa Cruz, nem a da fantasia. Existe mesmo, e a ponta oeste da ilha parece querer tocar Cancún, por onde o México contempla o Nordeste. Segundo dizem, não há tempo ruim para ir a Havana, nem mesmo de maio a outubro, quando chove. De dezembro a abril é inverno, e os turistas vêm do Canadá, das europas, todos querendo ver como é o sol mais ao sul. Os da terra tiram férias em julho e agosto e enchem as praias, língua também falada com desenvoltura do lado de cá. Tem festa em Natal, que desde a visita do papa virou feriado nacional; festa na Páscoa; festa no aniversário da inefável revolução – que pela (ideo)lógica de tempos mais duros ignorava as duas anteriores –, e no aniversário do Fidel. E tome salsa a noite inteira. Em fevereiro, tem carnaval (já ouvi isso em outras plagas): desfiles ao longo do Malecón, paradas em frente ao Capitólio. Enquanto a Bolívia conserva o entrudo – um carnaval brasileiro bem porquinho, dos anos 20 –, Cuba celebra sua festa de modo mais compatível com o que conhecemos aqui: o ritmo, as mulatas, o calor dos corpos que vão à forra e aquela liberalidade unânime que arrasta mesmo quem não dança. Ou será que não? A miragem fica embaçada e tenho que recorrer a fantasias, vergonhosamente inconfiáveis como toda fantasia, que me fazem ver um vago temor nos olhares da festa. Continuarão assim nos tempos pós-Fidel?

As festas religiosas e até uma procissão tradicional perduram, abastecidas pela mistura afroeuropéia de crenças e sincretismos, pelo misticismo que não consegue dispensar um bom terreiro, orixás, santerías para conseguir proteção e ter com quem se agarrar nos maus sucessos, amalgamado ao Deus dos cristãos, marcado a ferro e fogo nas gerações mais antigas e introjetado extra-oficialmente nas mais novas. Em dezembro, concorridíssima festa de são Lázaro, de popularidade em tudo semelhante à de são Jorge do dragão. Familiar, pois não?
O povo gosta de um agito, vida noturna e importados de contrabando. Tem sangue quente e ama a vida – aquela que o diabo gosta e nós também. Adoram feriados, que coincidência, mas conseguiram menos que nós aqui. O governo promove festivais culturais o ano todo, já que a iniciativa privada anda à míngua ou nem anda. O colonial de lá é espanhol, o daqui é português; mas não é pouca coisa partilhar com eles a experiência de um passado quase fatal, a simpatia, o calor humano, o sensualismo, o misticismo resistente e o jeitinho que quase tudo consegue, permite e encobre.

Pobreza? Em nossa cidade nóis sofre mas nóis goza. Decadência? A gente também tem. É páreo saber onde se mora pior, se lá ou aqui. Do ponto de vista de minha miragem, Havana é assim tipo ruas sujas da Lapa carioca dos tempos de Madame Satã, prédios semi-arruinados, águas nada confiáveis, monumentos arquitetônicos e tradições que amolecem o coração. O plus fica por conta do ardor cívico que lá, por força da situação, faz a diferença todo dia – e aqui fica por conta da Copa do Mundo.
Compatíveis com nossa natureza sociável, um botequim – dizem que maravilhoso – chamado Bodeguita del Medio, e um bar americano, o Floridita, concorrem com nossos pontos de atração na caça a turistas. Lá como aqui, não só os estabelecimentos, mas as pessoas batalham incansavelmente atrás de turistas multirrentáveis, que se interessem por informações, serviços diversos, pelas mulheres locais e por alguma coisa de fumar ou beber. A atitude e o gesto têm a mesma natureza, e o cenário é o do comum pauperismo criativo – razões à parte. E se os naturais de lá precisam de turistas de boa vontade para provar os drinques que Hemingway imortalizou, os de cá não ficam atrás; a diferença é que, se falta turista, no Rio se apela para os passantes, incautos ou não, mesmo quando se trata simplesmente de comer, o que não deixa de ser um processo extra-oficial de redistribuição de renda. Ou então – e aqui falo muito mais dos cariocas, porque a cana lá é muito mais dura – assaltam o bacana, a velhinha, o colegial ou quem estiver à mão. Mas quem sabe até onde chegarão esses havaneses sem a sombra e os limites do Nome do Pai?

Dizem (e alguns até dizem que provam) que as maiores diferenças correm por conta da eficiência dos serviços básicos de educação e saúde de lá. Não sei, ainda não abri os olhos. Ouço dizer que ninguém fica fora da escola, que o ensino é de qualidade, que há medicamentos e médicos bem formados para todo mundo, hospitais bem equipados e pesquisadores de tirar o chapéu. Tenho a impressão de que minha miragem surgiu justamente desse foco de sedução civil. E miragem é o que o coração enxerga.
Talvez Havana tenha mais eco, mais memória, mais museus que o Rio. Terá com certeza belezas particulares imperdíveis, a Praça da Catedral, artesãos de fim de semana, torres e castelos dos mais antigos das Américas. Os contrastes, se não me engana a miragem, entram em campo usando as camisas do passado e do presente e batem um bolão. E quanto ao resto – bom, cada cidade ecoa seus próprios terrores, oficiais ou não.

3 comentários:

Só Magui disse...

As cidades são únicas, os paises também.Pelo menos eles se livraram de ser a zona de prostituição dos EUA com os cassinos de Jean Giancana.Imagine com os traficantes de drogas dos dias de hoje.Quem vai saber onde está a felicidade!
http://somagui.zip.net

Marcelo F. Carvalho disse...

Lindo texto. Aliás, nunca fui a Havana, mas acho a Lapa linda!
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Abraço forte!

Jens disse...

Oi Adelaide.
Clap! Clap! Clap!
Esperava uma porrada política e encontrei uma reflexão poética e equilibrada.
Você me supreendeu, Adelaide. Pensando bem, normal. Um intelecto curioso e sensível como o teu (pelo menos é assim que te percebo)se recusa a ser óbvio.
Abraço. Beijo.