sábado, 2 de fevereiro de 2008
A genealogia de Alice - II
Nicoletta. Incerteza.
As pessoas têm uma estranha necessidade de saber de onde vêm. Não foi à toa que a heráldica se desenvolveu, e ainda hoje, longe dos tempos da aristocracia, quando o grosso da humanidade olha com divertido sarcasmo ou até com certa irritação os títulos nobiliárquicos, ninguém fica indiferente ao descobrir o nome de um tetravô ou de um tio-bisavô que nem desconfiava ter. Mais gente do que se imagina se preocupa em pesquisar de onde vieram seus pais e avós, ainda que tenham sido simples balconistas ou ajudantes de obras. Há certo afeto pregresso na maioria das famílias, e o simples fato de carregar algum traço do DNA de alguém torna esse alguém importante para nós, pouco importando o que foi ou fez na vida. E caso o personagem tenha sido um vilão em seu tempo, cria-se uma aura nebulosa ou simplesmente fala-se dele com neutralidade, porque ninguém tem nada com isso.
No caso dos descendentes de Alcebíades, havia um motivo ainda maior para tal curiosidade. O homem estava vivo, e aos noventa e quatro anos, morando numa casa de jardim e quintal plantado de árvores em Areal, era forte como um touro e não dispensava dois copos de vinho por dia. Era ainda, segundo a mulher (quarenta anos mais nova e a terceira conhecida, porque sabia-se vagamente da existência de outras), “um verdadeiro homem”, o que na sua linguagem queria dizer que não broxara.
Havia uma espécie de lenda em torno de um antepassado inglês, morador de Porto Alegre, casado, amante que de uma certa Lucinda Correia, sua doméstica ou pessoa de classe menos dotada, que a teria engravidado e, para não ter que assumir o filho, despachara-a para o Espírito Santo com uma boa quantia para se sustentar até conseguir um emprego. Dizia-se que o filho de Lucinda era Alcebíades, e para testá-lo falavam a toda hora numa Lucinda inventada, e olhavam disfarçadamente sua reação. Alguns chegaram a notar nele movimentos de impaciência ou emoção nunca comprovados. A história, relato muito antigo que um filho do velho jurava ter ouvido ainda criança, fora aceita por todos ou quase.
A história do inglês tomou alento quando um sobrinho chamado Cleto aproveitou uma viagem ao Sul para pesquisar a existência desse pai. No consulado descobriu perto de mil e quinhentas famílias de origem inglesa em Porto Alegre, mais trezentas e setenta e cinco nas imediações e, em todo o estado, quase três mil. Um pouco desanimado, tentou localizar as mais abastadas entre as da capital. Se o pai do velho tivera cacife pra bancar a mulher e o filho bastardo em outro estado, devia ter grana. Conseguiu apenas identificar umas três ou quatro, assim mesmo com grande dificuldade, devido à imprecisão dos dados. Estava prestes a desanimar, quando se lembrou do nome da coitada da mãe, e partiu em busca dos Correia da lista telefônica, o que logo lhe pareceu uma bobagem, porque a tal Lucinda já devia estar morta e enterrada havia décadas e, se era pessoa de poucas posses, completamente esquecida. Além disso, desterrada no Espírito Santo, quem se lembraria mais dela? Nem pensava mais no assunto, quando encontrou por mero acaso uma senhora chamada Lucinda num subúrbio de POA, e por desfastio perguntou-lhe o sobrenome. Era Correia. E o nome era comum em sua família? Ah, sim, a mulher respondeu, animada. Todo mundo se chama Lucinda, na minha família, acrescentou, e logo corrigiu com ar meio escandalizado que só as mulheres, é claro. Estavam os dois numa fila de banco, e ele calculou que uma descendente da tal Lucinda do inglês não devia ter conta em banco. A não ser que... A mulher se voltou de novo para ele e perguntou, curiosa, por que ele queria saber. Ah, ele disse, nada não, é que eu procurava uma conhecida... Sua conhecida? É, quer dizer, uma antepassada... A curiosidade da mulher cresceu e ela sorriu, encantada. Que coincidência! Pois é, uma bisavó... De conversa em conversa, chegaram à conclusão de que uma tia-avó da boa senhora podia bem ser a pessoa em questão. Quer dizer, não chegaram a conclusão nenhuma, mas havia uma possibilidade. Ele então aceitou ser levado a um primo dela e saíram do banco direto para a casa desse primo, Cleto meio preocupado porque teria que viajar naquela noite de volta ao Rio.
O homem o recebeu com muita amabilidade, mas como fosse muito surdo, a conversa levou o dobro do tempo que tomaria normalmente. Chegaram enfim à curiosa conclusão de que, como disse o ancião, Lucinda, sua mãe, tanto podia ser a pessoa procurada como não ser. Se fosse, o tio de dona Lucinda Correia, filho da homônima tia-avó dela, seria um irmão mais novo do tio de Cleto, seu Alcebíades. O homem parecia felicíssimo com a suposição, e seus olhinhos brilhavam no fundo das sobrancelhas grisalhas. Cleto se impacientava. Em vez de solucionar o problema, criara mais um com sua pesquisa de campo. E se atrasava para a viagem. Custou um pouco, mas conseguiu explicar ao bom velhinho que agradecia muito, mas precisava tomar um avião para o Rio dali a duas horas. Despediu-se deixando o endereço para que o bom homem lhe escrevesse sobre a intrincada história da família e levando endereços e telefones que não sabia bem para que serviriam. Deixou sua nova amiga em casa e seguiu para o hotel esbaforido, esquecendo o papel com as anotações sobre a cama. Dois meses depois recebia uma carta breve e bem escrita de dona Lucinda Correia, avisando da morte do tio e lamentando que não tivesse mais dados que pudessem ajudar na busca da tia-avó idem, isto é, Lucinda Correia. Deixava à disposição de Cleto e família seu próprio endereço, para que a procurassem caso pudesse ser de alguma utilidade.
Essa história fez nascer novas suposições no seio da família, que agora acreditava na existência do inglês, embora sem provas conclusivas. Explicavam assim os olhos claros da parentada e satisfaziam certa aspiração a essa origem romântica do velho, que passou a ser olhado com mais atenção e até com mais carinho pelos mais jovens. Ficava mais fácil também entender a suposta briga com a família, nesse caso reduzida a uma mãe solteira. Mas por que teriam brigado, ele em tão tenra idade? Talvez tivesse encontrado maus amigos e se desencaminhado atrás de aventuras, tornando-se um garoto de rua, o que naquele tempo talvez fosse menos horrível que agora. Talvez tivesse sido obrigado a trabalhar para sustentar a mãe doente e desvalida, ou talvez a mãe o tivesse abandonado, coitado, por causa das dificuldades por que passavam. Quem sabe tinha ficado órfão e não tivesse tido escolha senão se virar sozinho, inventando depois uma outra realidade em que aparecesse como garoto precoce, cheio de iniciativa? Era bem a cara dele.
Nada garantia no entanto que o pai tivesse sido o inglês, nem que dona Lucinda Correia fosse mesmo a mãe abandonada. Continuavam na mesma – eram suposições e mais nada.
Alcebíades continuava na dele. Um dos netos chegou a pensar em ir a Vitória à procura de informações mais precisas. Aquele cara não podia ter nascido do nada. Mas por onde havia de começar, se nem do nome original dele tinham certeza? Pensando bem, uma grande bobagem tudo aquilo, que o velho nem merecia. Era um chato, ranzinza e preconceituoso, cheio de manias, ego hipertrofiado.
Estavam as coisas nesse pé, quando um dia chega uma carta de dona Lucinda, a sobrinha-neta da dita cuja, com uma foto da tia-avó. Era um daqueles retratos cor de sépia, e mostrava uma bonita senhora de formas generosas e olhar distante. Tinha um sorriso de Mona Lisa e os cabelos caíam em cachos escuros sobre os ombros que apareciam a meio do decote. Criou-se certo alvoroço na família, reunida no fim de semana em casa do filho mais velho. Engraçado, ele dizia, esse rosto não me é estranho. Combinaram que o melhor a fazer seria levar a foto à casa de Alcebíades e deixá-la sobre um móvel qualquer onde ficasse bem visível. Se aquela fosse mesmo a mãe dele, o velho deixaria transparecer algum tipo de reação.
Na manhã seguinte se reuniram antes da hora do almoço e seguiram para Areal. Entraram dizendo que era uma surpresa, que tinha dado saudade do patriarca da família (Alcebíades adorava ser chamado patriarca da família) e se espalharam na varanda, respirando o ar fresco, enquanto a mulher do velho ia pegar um café. Conversaram um pouco e depois foram até o jardim, enquanto o mais novo deixava a foto de dona Lucinda Correia sobre a mesinha da varanda. Meia hora depois voltavam, mas o velho fez questão de entrar pela cozinha, pedindo mais café à mulher, que não parecia lá muito contente com as visitas. O mais novo deu então um jeito de ir à varanda, esqueci meus óculos, e pôs o retrato na entrada da sala. Mas estavam todos juntos e Alcebíades nem reparou. Então o mais velho não se conteve e pegou a foto como por acaso: olha só o que eu achei, pai, que senhora bonita, não? Alcebíades se voltou distraidamente e olhou a foto. O silêncio era total. Depois de uns segundos de olhar a imagem de várias distâncias e posições, ele perguntou essa não é Alice? Alice era a neta mais velha, que morava nos states com o marido engenheiro e os três filhos. Os quatro se concentraram na foto e um oh apareceu na sala de móveis antigos e desparelhados. Por fim, o pai de Alice concordou – é mesmo, pai, sabe que eu nem tinha reparado?
Olharam para o velho sem saber o que dizer, e o viram tirar os óculos e limpar os olhos. Ela é tão parecida com minha falecida mãe – dizia ele, e os quatro o abraçaram.
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2 comentários:
É, Adelaide, não se trata só da estranha busca por uma afeição pretérita, mas também da importância das lembranças, da memória, ainda que inventadas, para a criação da fantasia que sempre ajuda a nos enxergarmos de modo mais simpático. Além disso, a memória sempre foi ótimo alimento para a Literatura, como esse seu belo texto demonstra.
Você soube conduzir a narrativa com muita habilidade até atingir o momento crucial dela. Gostei muito!
Um abraço.
Muito boa, esta história. Acho que esta nostalgia das origens nos vai atacando com a idade, Adelaide. Hoje em dia tenho muito mais curiosidade por assuntos familiares do passado, parentes desaparecidos, histórias de família, etc.
Olha, há um desafio para vc lá no Porta do Vento. Passe por lá para ver, ok?
Um beijo
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