segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Pensamentos de janela


Foto Alfredo Muñoz de Oliveira.

Estava eu na janela a contemplar os galhos da amendoeira fronteiriça (uia!), quando me veio à cabeça que entre as idéias de estar e ter há nuances quase tão fogosas quanto as conhecidas diferenças entre ser e ter, que já se tornaram meio clichê – o que é mau, desgastante para uma idéia que vale a pena desenrolar de vez em quando.
A gente vive tão massacrada pela filosofia de mercado/lucro que se infiltra em nosso cotidiano, que há quem pense em mudar para as montanhas do Tibet e viver de leite de cabra e frutos silvestres, tecendo a própria túnica e dormindo numa gruta forrada de capim seco. Não seria uma rima nem uma solução, porque estaríamos perdendo os melhores filmes do ano, House e o sorvete de pavê, além dos riscos de faltar repelente de mosquitos e vacina contra veneno de cobra. Quem nasceu pra civilizado ocidental nunca chega a monge budista.
As diferenças entre estar e ter têm a ver com o instante (vide Clarice e o instante-já), única parcela do tempo com que podemos mesmo contar – e que dura... um instante – e o consumo, com todos os envolvimentos que ele supõe e dos quais é impossível fugir. O rolo compressor do mercado ameaça diluir nossos instantes, levando-nos a comprar o que talvez nos fosse inteiramente indiferente sem esse estímulo. O gosto e a criatividade são atingidos pela gosma invasiva da propaganda e pelos imperativos do lucro alheio. É um preço alto demais. Por sua vez, a mídia só colabora com esse estado de coisas, porque também precisa vender seus produtos.
Até a auto-estima está vendida ao mercado, porque só se considera vencedor quem faz dinheiro para si e para quem se dispõe a patrociná-lo. A maior parte da sociedade se marginaliza, escravizada por subempregos, sem falar na parcela dos que buscam afirmação e qualidade de vida na ilegalidade e no crime, nem sempre por falta de recursos, mas por motivos que vão de tendências de caráter a influências negativas do próprio meio.
Já que não dá mesmo pra escapar, é preciso aprender a enfrentar o bicho. Acredito que ajuda um certo descompromisso com os valores vigentes (a maioria deles sugeridos pelas mensagens da propaganda), porque a vida é aqui e agora, e não temos a menor idéia de até quando chegaremos. Não quer dizer desbunde geral, não mesmo. Quer dizer apenas certa autonomia que permita viver mais intensamente o instante-já de que falava Clarice, e que dura o tempo em que a roda em movimento toca o chão. Ir o mais fundo possível naquilo que temos prazer em fazer. Curtir as pessoas importantes, viver o amor de modo pleno, realizar projetos sem comodismo – enfim, ir até onde se puder chegar, tornando a vida uma sucessão de instantes que valha a pena lembrar. O próprio trabalho pode dar muito prazer a quem o faz e gosta do que faz.
Não é preciso ter muito. O essencial é estar bem, estar inteiro no momento em que se vive. Para isso servem o coração e os sentidos, a memória e as mãos, o corpo e o pensamento.

3 comentários:

Anônimo disse...

É, auto-estima está a venda no mercado, mas quem compra não fica muito satisfeito, fica é iludido. Não acredito em satisfação no trabalho (se fosse possível gostar do trabalho, ele teria outro nome), mas vou tentar seguir todos os outros conselhos. Um abraço e ótimo 2008.

ana v. disse...

Boa receita, Adelaide. E não é tão difícil assim... é só pôr intensidade e convicção no que se faz, e ter uma boa dose de humor para o "volte face" necessário nas coisas chatas. O resto vem por acréscimo. E o que não vier... enfim, de vez em quando também é preciso chorar um bocadinho, para lavar os olhos...
um beijo
ana

o refúgio disse...

Adelaide, eu quero ser mas às vezes me falta tempo...que mundo perverso,não?

Belo texto!
Beijos.