segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Viagens



— Se eu tivesse muito dinheiro, você aceitaria viajar comigo?
— Despesas pagas?
Olhou-a com ar meio canalha.
— É mesmo? Para onde?
— Paris, Roma, Londres...
— Londres não, os ingleses comem muito mal.
— Mas têm restaurantes de comida estrangeira. Têm lanchonetes e hambúrgueres.
— A água lá é péssima. Prefiro Paris. Roma é muito barulhenta. O trânsito é insuportável.
— Depende de por onde se anda. Barulho há em qualquer cidade grande.
— É diferente. Prefiro Paris. Pensando bem, por que não o Nepal? É belíssimo, o Nepal. Ou alguma aldeia indonésia.
— Ou ilha grega, Creta, Samos, Paros com a montanha de mármore. O céu da Grécia é divino, foi por isso que eles imaginaram aqueles deuses todos. Deuses brotando até do chão.
— São deuses de verdade, ao menos dão para entender, malandros e presunçosos como nós.
— Na Itália há cidades maravilhosas. Na França, na Espanha.
— Ah, a Espanha eu...
— Os castelos da Floresta Negra.
— As tortas.
— Os austríacos, os suíços. Itália por causa do vinho. E depois as aldeias européias sempre valem a pena.
Ele mastigava salaminho olhando-a de olhos meio fechados. O nome da Grécia lhe dava a sensação de estar com balas brancas de coco desmanchando na boca. Deviam ser aquelas casas caiadas contra o fundo do mar azul-topázio, azul-cobalto, azul-esmeralda, azul com ou sem espuma. Tão bom como balas de coco, ela não entenderia. Era meio obtusa às vezes e principalmente se julgava mais culta que ele. Os telhados cercando as enseadas, o topo arredondado de construções brancas, cortinas voando de janelas floridas ladeiras acima. Gatos pretos recortados contra muros caiados. Mar e telhados, azuis intensos e branco. Analisou-a com olhos isentos e registrou um acúmulo de gordura dispensável em suas costas e nos braços, que nela o agradavam acima de tudo.
— Estive em algumas agências, ela acrescentou.
— E quem você deixaria numa ilha deserta?
— Qualquer homem que me incomode muito. Fiz muitos cálculos, olhei preços de hotéis, albergues e tudo. Não quero ir sozinha.
Devia estar contente, teria a companhia de um cara descolado e alegre. Mas estava de repente insatisfeita, vendo os olhos dele mais curiosos do que ternos. À frente, a lagoa deslizava mansa para longe, picando a luz do poente em pedaços que iam diminuindo à distância. Ficaram abraçados, ouvindo os pássaros invisíveis da tarde. Entre os dois, um anjo decaído premeditava coisas.


Trecho de Como se livrar de Glória.
Texto reeditado

13 comentários:

Lord Broken Pottery disse...

Adelaide,
Delícia de texto. No meu caso, embora adore Paris e Roma, iria mesmo é para Londres. Que saudade tenho sentido daquela terra, puxa!
Beijão

Lapa disse...

querias comprá-lo.

Anônimo disse...

Ai, Adelaide, tô até com vergonha... Mas espera, espera que antes do ano terminar eu compro seus livros! Enquanto isso, vai deixando a gente com água na boca... Um abraço

Maria disse...

Uma parte apenas...imagina o todo !
Delícia de texto. Beijos !

Marcelo F. Carvalho disse...

Pô Adelaide, este texto é muito bom!

Tania regina Contreiras disse...

Texto de se ler em deleite!!!
Beijos,

Zélia Guardiano disse...

Ah, Dade querida, o nosso espírito, sempre em viagem...
E pode ter certeza: há SEMPRE um anjo decaído premeditando coisas...
Lindíssimo o seu texto!
Vontade de partir para qualquer lugar...
Beijos da
Zélia

Jorge Pimenta disse...

que me perguntem... nem ouso escolher o destino :)
beijos, dade!

Marcelo Pirajá Sguassábia disse...

Ótimo texto, ótimos diálogos, ótimo blog. Adivinhe o adjetivo para a autora...
Um grande abraço, Dade, e parabéns por mais este.

Mari Amorim disse...

Ser mulher é ser especial,
amiga Dade
Quero abraça-la,e agradecer o carinho e a amizade,neste dia tão especial,seja feliz!
Boas energias,paz,saúde,e luz,
beijos poéticos
Mari

Aline disse...

Vim retribuir sua visita e fiquei encantada com a qualidade do teu espaço e teus escritos!!
Achei o título bárbaro e se der uma olhadinha no retrovisor... já estou te seguindo!
Beijo...
Aline Morais Farias
Blog:Periódico Subversivo
http://alinemoraisfarias.blogspot.com/

conduarte disse...

Bonito texto! Voltarei por aqui e obrigada por sua valiosa visita, bjs CON

Márcio Ares disse...

Que bela prosa. Pura poesia. Não entendi a despedida no início. Mas não se incomode... muita coisa eu não entendo!!! Vou passear mais por aí. A gente se esbarra nas palavras, felizmente. E vamos dizer de uns e outros escritos muito acontecimento. Beijo na alma. Sucesso, sempre!

Márcio Ares.