domingo, 26 de janeiro de 2014

A vila

Esse arzinho úmido de após chuva sempre mexe com a minha alegria número oito, a mais discreta; Uma alegria tão discreta que às vezes fico na dúvida se é mesmo uma alegria. De noite, lembra outras noites muito longínquas. Lembra um chão de cimento rachado. umas poças dágua muito jeitosas, um tufo de mato escapando das rachas, uns muros cobertos de hera...
Naquele tempo, o mundo era limitado por um pomar à esquerda, um casarão à direita e uma rua sem calçamento. Habitavam-no dez pessoas, vizinhos e moleques. Ás vezes havia tios e primos, uma avó de colo gostoso. Também havia uma senhora gorda, que manchava de batom os biscoitos que mamãe lhe servia com café e puxava por uma perna. Havia também um médico de orelhas grandes e olhos pequenos que fazia brincadeiras engraçadas. Suas visitas coincidiam com um céu profundamente azul, que dava um aperto na boca do estômago.
 Havia também uns sapos cantadores, negros, luzidios, de olhos cintilantes, e os fazíamos pular com uma varinha. Isso acontecia nas áreas iluminadas, porque no escuro eles ficavam bravos e podiam jogar um líquido que cega a gente.
Havia estrelas puríssimas. Enfeitavam véus diáfanos, de mistura com lamés e com as roupas deslumbrantes de Monteiro Lobato. Aí aconteciam lances trágicos, suspenses e dramatizações suntuosas em florestas encantadas, dramatizações suntuosas em florestas encantadas, florestas encantadas,  salões de festa. A vila era cemitério à meia-noite, praia ou piscina.
Um dia não me contive e fui lá, rever a vila grande, clara e alegre, cheia de folhas verdes por todos os lados. Fui buscar um sol morno e dourado que me fez feliz como poucas vezes consegui ser depois. Queria ouvir um coro de roda, mergulhar numa noite mágica. Queria ver como estavam as florestas, o castelo, o mar, o cemitério. Espantar sapos encantados.
Acabei chorando naquela vila estreita, suja no chão de cimento. Já não havia plantas, as casas  eram duras, e as janelas me olharam com severidade, as portas sorriam  duras, hostis. Já não crescem estrelas nas árvores...
 

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Conversinha


 
Antigamente eu me aborrecia quando o cós de uma saia ficava muito amassado na reentrância da cintura. Agora tenho mais com que me aborrecer.
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Hoje encontrei anotado numa orelha de apostila: “o que é espontâneo vive para sempre”.
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Naquele dia, precisava assistir ao jornal das quatro, que ia transmitir uma entrevista de Cosme, meu colega de faculdade. Nos tempos da universidade, Cosme era um adolescente magrinho, moreno, descendente de índios do Amazonas; meio rebelde, inquieto, de olhos negros puxados. Naquela altura, porém, já se tornara um caboclo barrigudinho de barbas compridas e grisalhas. O que não me saía da cabeça era que não seria justo deixar de vê-lo naquele dia. Porque talvez ele não vivesse muito mais. Porque talvez eu não tivesse muito mais para viver. Um mês depois recebi a notícia de sua morte.
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Tudo que se consegue saber do futuro com relativa certeza é o que a meteorologia prevê. O que é bem pouco, tendo em vista o percentual de erros na previsão do tempo.
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O mais alto a que consigo chegar é quando procuro de todo coração entender alguém. Nesses momentos me sinto no nível dos cristais de chuva.
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Deve-se perder o presente em nome do futuro?

sábado, 11 de janeiro de 2014

Um analgésico



Você estava de cinto? É alérgica a algum medicamento? As duas perguntas, todo o tempo, tempo todo, perfurando, ora uma, ora outra. Como eu só conseguia ver o céu e os tetos, apenas pressentia os perguntadores diferentes. Gastava o pouco fôlego para explicar as dores, peito espremido e ombro esquerdo fisgando a alma, ao perguntador errado. Ainda não era o médico. Este se repetiu como os outros, mas me machucou mais, não por me mudar de posição na maca, e sim por apertar mesmo, e fiquei com muita raiva dele, que nem bicho ferido.

Ele sumiu para se vingar da minha cólera, e sabia de tudo, foi o que eu pensei, confusa sobre essa nova relação, nova para mim mas não para médicos ou enfermeiros ou sei lá quem eram aquelas vozes. Fui alegre demais, um fim de semana inteiro, por isso eu estava esquecida agora naquela superfície dura e fria, colar cervical, tentando descobrir se aquilo era um corredor ou uma sala. Um corredor, a fila do raio X, conclui, mas também era o purgatório, eu devia esperar o julgamento para enfim poder respirar, e prometo nunca mais ser tão feliz, pelo menos não um fim de semana inteiro.

“Onde está o Alex?” e ninguém me respondeu, mas nele havia sangue, em mim não, então as penitências se cumpriam separadas, era a lógica daquele lugar comprido. “Preciso de um analgésico”, disse humilde quando alguém passou, mas devia ser só um empurrador de macas, que não respondeu, um servente, quantos funcionários pode ter um purgatório? Talvez já tivessem me dado algum analgésico, porque o ritual de tentar pegar a veia, tão fininha, ainda mais com esse pulso, havia acontecido logo que saí da ambulância. Senti uma saudade patética da moça do corpo de bombeiros, ela sim prometendo o fim da dor, provavelmente era uma ou duas costelas quebradas, e tudo iria melhorar no hospital, só que me desviaram para outro lugar, uma conspiração, porque gozar tantas vezes num fim de semana tem seu preço. De repente, ninguém se interessava por mim, não queriam mais saber se eu usava de cinto, se era alérgica. Eu estava sozinha. “Não consigo respirar”, repeti para ninguém, e o limite físico parecia próximo, se fosse um filme eu desmaiaria, se fosse um filme a traição também seria punida.

Contei sobre os tetos, depois, para o meu analista. Quando você só enxerga tetos, descobre coisas. Vestígios de sangue escuro em um teto tão alto fazem esguichar pensamentos claros. A dor deixa a pessoa mais viva e achei quase morrer parecido com parir ou fazer sexo. Eu precisaria saber viver depois daquilo, foi o pensamento que quase suplantou a dor, porque no fundo eu sabia que ia viver - eu era um bicho. Luz branca, formas descascadas na pintura velha, manchas nojentas, uma teia de aranha sem aranha. E sangue espirrado. Sangue espirrado fica marrom. Quando meu pai foi encontrado, eu só conseguia pensar na putrefação, quase dois dias, em vez de chorar como os outros. Se fosse possível morrer às vezes para se sentir tão vivo...

“O seu amante está sendo operado”, quem me disse foi Afonso, a voz de uma raiva cansada. Eu não precisava pedir desculpas, era a vantagem da dor e de estar na porta do inferno. Ele colocou a mão nos meus cabelos. Eu era um bicho, meu ombro esquerdo saltava para fora do corpo e mesmo assim precisava daquele carinho, qualquer carinho, talvez fosse vomitar. Vamos sobreviver, foi o que ele disse ainda, mas eu sabia que seria por pouco tempo, porque sobrevidas sempre duram pouco. E eu teria que conviver com os tetos manchados, pressentindo aranhas.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Aos pedaços




"Sofrimento que ninguém descreve,
como um peso na alma [...]
é a dor das águas que o moinho mói, é a
dor que não sabe onde é que dói".
Dante Milano


Vivemos num tempo de fragmentação cultural e subjetiva. Um tempo em que a dor, a morte, o amor, a alegria, o sucesso e o fracasso das pessoas que a mídia escolhe para melhor vender seus produtos são tratados como peças de um game de proporções globais. A mesma pessoa, às vezes voluntariamente exposta, outras vitimada ou incensada por alguma espécie de notoriedade que a torna de interesse público, ganha faces diferentes e até contraditórias, segundo o veículo e o repórter ou comentarista.
Os fatos são avaliados, analisados, discutidos, dissecados, julgados e definidos por diversos critérios, em polêmicas que parecem sérias, mas na verdade perdem qualquer credibilidade quando se observa com isenção tudo que se comenta e sentencia a respeito. Falta lógica, falta objetividade e, como se o mundo se tivesse tornado uma torre de Babel, cada qual fala uma língua, sem entender nem se preocupar com a do outro, e todos são donos da verdade.
A intelligentsia-classe-média, representada pela mídia de mais recursos e poder, toma conta dos assuntos e manipula opiniões, às vezes respeitáveis, para dar ao público uma resposta capaz de aplacar inquietações, dúvidas e escrúpulos. Podemos dormir tranquilos. Afinal, quem somos nós, pobres anônimos, pra pensar diferente? Assim se encerra a polêmica e cada qual veste a opinião alheia a seu jeito, como quem veste uma roupa de segunda mão vendida pelos jornais, revistas, canais de televisão, noticiários radiofônicos.
Armado o jogo, vilões, mocinhos, princesas, bandidos, vítimas e algozes ficam nítidos e fáceis de entender. E o drama, a dor alheia, a notícia pungente da primeira manchete ganham um colorido atraente, confortável, divertido até.
O príncipe pouco romântico casou com a amante feiosa, mas como ousaram quebrar o padrão consagrado dos amores principescos, caíram num irremediável ridículo.
A moça que vegetava (será mesmo que vegetava? Alguém pensou e sentiu com seu cérebro, percorreu as terminações nervosas de seu corpo, experimentou as sinapses que ainda funcionavam nela?), a moça que para todos os efeitos vegetava foi eliminada aos olhos do mundo, sem ao menos gozar da paz e da privacidade que se supõem necessárias a quem vai morrer.
O papa Paulo VI entrou no período final de sua vida e foi filmado, fotografado, visto e revisto enquanto a agonia tomava conta dele em plena janela aberta do Palácio do Vaticano, ao vivo e em cores. E quando já nem esse espetáculo angustioso podiam oferecer, filmaram sua oração calada e humilhada de costas para as câmeras. Qual o sentido dessa notícia, dessas imagens?
Talvez essas figuras, configuradas para o consumo, travestidas de informação, sirvam como um bom suporte para a projeção das dores de cada um, dos conflitos subjetivos, anônimos, que não têm solução ou impõem tanto esforço, tanto desgaste e sofrimento.
Talvez assistindo ao tormento e à agonia alheios, deixando-nos envolver num drama, real ou inventado, que não é nosso, o tempo passe mais depressa e nos poupe de nossa própria dor. Talvez, chorando de pena daquela figura virtual, minha perda fique mais suave, o amor rasgado e o silêncio de uma ausência em minha vida se percam no burburinho que me cerca. Ou o trabalho mal-remunerado, o convívio desgastante, as frustrações, aquilo que grita e pesa dentro de cada um silenciem um pouco.
É tão mais duro e tão mais difícil olhar de frente o que se passa em nós! Temos desejos que nunca se realizam. Sentimos hostilidade por pessoas que não podemos agredir ou afastar; é tanta a ansiedade, angústia que não se sabe de onde vem, tristeza, depressão. Sem que se perceba, a vida individual fica ainda mais vazia diante do grandioso espetáculo das imagens misteriosamente importantes, belas, mágicas, que merecem retratos coloridos e sorriem sempre, inatingíveis. Mas não faz mal que nossos problemas fiquem ainda mais agudos, se temos um anestésico tão poderoso. Sofre-se menos, quando se faz parte da imensa multidão para quem a vida vai passando em branco.