Você estava de
cinto? É alérgica a algum medicamento? As duas perguntas, todo o tempo, tempo
todo, perfurando, ora uma, ora outra. Como eu só conseguia ver o céu e os tetos,
apenas pressentia os perguntadores diferentes. Gastava o pouco fôlego para
explicar as dores, peito espremido e ombro esquerdo fisgando a alma, ao
perguntador errado. Ainda não era o médico. Este se repetiu como os outros, mas
me machucou mais, não por me mudar de posição na maca, e sim por apertar mesmo,
e fiquei com muita raiva dele, que nem bicho ferido.
Ele sumiu para
se vingar da minha cólera, e sabia de tudo, foi o que eu pensei, confusa sobre essa
nova relação, nova para mim mas não para médicos ou enfermeiros ou sei lá quem
eram aquelas vozes. Fui alegre demais, um fim de semana inteiro, por isso eu estava
esquecida agora naquela superfície dura e fria, colar cervical, tentando
descobrir se aquilo era um corredor ou uma sala. Um corredor, a fila do raio X,
conclui, mas também era o purgatório, eu devia esperar o julgamento para enfim
poder respirar, e prometo nunca mais ser tão feliz, pelo menos não um fim de
semana inteiro.
“Onde está o
Alex?” e ninguém me respondeu, mas nele havia sangue, em mim não, então as
penitências se cumpriam separadas, era a lógica daquele lugar comprido. “Preciso
de um analgésico”, disse humilde quando alguém passou, mas devia ser só um
empurrador de macas, que não respondeu, um servente, quantos funcionários pode
ter um purgatório? Talvez já tivessem me dado algum analgésico, porque o ritual
de tentar pegar a veia, tão fininha, ainda mais com esse pulso, havia
acontecido logo que saí da ambulância. Senti uma saudade patética da moça do
corpo de bombeiros, ela sim prometendo o fim da dor, provavelmente era uma ou
duas costelas quebradas, e tudo iria melhorar no hospital, só que me desviaram
para outro lugar, uma conspiração, porque gozar tantas vezes num fim de semana
tem seu preço. De repente, ninguém se interessava por mim, não queriam mais
saber se eu usava de cinto, se era alérgica. Eu estava sozinha. “Não consigo
respirar”, repeti para ninguém, e o limite físico parecia próximo, se fosse um
filme eu desmaiaria, se fosse um filme a traição também seria punida.
Contei sobre os
tetos, depois, para o meu analista. Quando você só enxerga tetos, descobre
coisas. Vestígios de sangue escuro em um teto tão alto fazem esguichar
pensamentos claros. A dor deixa a pessoa mais viva e achei quase morrer
parecido com parir ou fazer sexo. Eu precisaria saber viver depois daquilo, foi
o pensamento que quase suplantou a dor, porque no fundo eu sabia que ia viver -
eu era um bicho. Luz branca, formas descascadas na pintura velha, manchas
nojentas, uma teia de aranha sem aranha. E sangue espirrado. Sangue espirrado
fica marrom. Quando meu pai foi encontrado, eu só conseguia pensar na putrefação,
quase dois dias, em vez de chorar como os outros. Se fosse possível morrer às
vezes para se sentir tão vivo...
“O seu amante
está sendo operado”, quem me disse foi Afonso, a voz de uma raiva cansada. Eu
não precisava pedir desculpas, era a vantagem da dor e de estar na porta do
inferno. Ele colocou a mão nos meus cabelos. Eu era um bicho, meu ombro esquerdo
saltava para fora do corpo e mesmo assim precisava daquele carinho, qualquer
carinho, talvez fosse vomitar. Vamos sobreviver, foi o que ele disse ainda, mas
eu sabia que seria por pouco tempo, porque sobrevidas sempre duram pouco. E eu teria
que conviver com os tetos manchados, pressentindo aranhas.
3 comentários:
Teus textos são perfeitos e lindíssimos!
Beijo
Perfeito, Dade!
Beijo
Gosto sempre de teus textos.
Beijocas
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