sábado, 11 de janeiro de 2014

Um analgésico



Você estava de cinto? É alérgica a algum medicamento? As duas perguntas, todo o tempo, tempo todo, perfurando, ora uma, ora outra. Como eu só conseguia ver o céu e os tetos, apenas pressentia os perguntadores diferentes. Gastava o pouco fôlego para explicar as dores, peito espremido e ombro esquerdo fisgando a alma, ao perguntador errado. Ainda não era o médico. Este se repetiu como os outros, mas me machucou mais, não por me mudar de posição na maca, e sim por apertar mesmo, e fiquei com muita raiva dele, que nem bicho ferido.

Ele sumiu para se vingar da minha cólera, e sabia de tudo, foi o que eu pensei, confusa sobre essa nova relação, nova para mim mas não para médicos ou enfermeiros ou sei lá quem eram aquelas vozes. Fui alegre demais, um fim de semana inteiro, por isso eu estava esquecida agora naquela superfície dura e fria, colar cervical, tentando descobrir se aquilo era um corredor ou uma sala. Um corredor, a fila do raio X, conclui, mas também era o purgatório, eu devia esperar o julgamento para enfim poder respirar, e prometo nunca mais ser tão feliz, pelo menos não um fim de semana inteiro.

“Onde está o Alex?” e ninguém me respondeu, mas nele havia sangue, em mim não, então as penitências se cumpriam separadas, era a lógica daquele lugar comprido. “Preciso de um analgésico”, disse humilde quando alguém passou, mas devia ser só um empurrador de macas, que não respondeu, um servente, quantos funcionários pode ter um purgatório? Talvez já tivessem me dado algum analgésico, porque o ritual de tentar pegar a veia, tão fininha, ainda mais com esse pulso, havia acontecido logo que saí da ambulância. Senti uma saudade patética da moça do corpo de bombeiros, ela sim prometendo o fim da dor, provavelmente era uma ou duas costelas quebradas, e tudo iria melhorar no hospital, só que me desviaram para outro lugar, uma conspiração, porque gozar tantas vezes num fim de semana tem seu preço. De repente, ninguém se interessava por mim, não queriam mais saber se eu usava de cinto, se era alérgica. Eu estava sozinha. “Não consigo respirar”, repeti para ninguém, e o limite físico parecia próximo, se fosse um filme eu desmaiaria, se fosse um filme a traição também seria punida.

Contei sobre os tetos, depois, para o meu analista. Quando você só enxerga tetos, descobre coisas. Vestígios de sangue escuro em um teto tão alto fazem esguichar pensamentos claros. A dor deixa a pessoa mais viva e achei quase morrer parecido com parir ou fazer sexo. Eu precisaria saber viver depois daquilo, foi o pensamento que quase suplantou a dor, porque no fundo eu sabia que ia viver - eu era um bicho. Luz branca, formas descascadas na pintura velha, manchas nojentas, uma teia de aranha sem aranha. E sangue espirrado. Sangue espirrado fica marrom. Quando meu pai foi encontrado, eu só conseguia pensar na putrefação, quase dois dias, em vez de chorar como os outros. Se fosse possível morrer às vezes para se sentir tão vivo...

“O seu amante está sendo operado”, quem me disse foi Afonso, a voz de uma raiva cansada. Eu não precisava pedir desculpas, era a vantagem da dor e de estar na porta do inferno. Ele colocou a mão nos meus cabelos. Eu era um bicho, meu ombro esquerdo saltava para fora do corpo e mesmo assim precisava daquele carinho, qualquer carinho, talvez fosse vomitar. Vamos sobreviver, foi o que ele disse ainda, mas eu sabia que seria por pouco tempo, porque sobrevidas sempre duram pouco. E eu teria que conviver com os tetos manchados, pressentindo aranhas.

3 comentários:

AnaC disse...

Teus textos são perfeitos e lindíssimos!

Beijo

Aloísio disse...

Perfeito, Dade!

Beijo

Camilla disse...

Gosto sempre de teus textos.

Beijocas