quarta-feira, 14 de julho de 2010

Frágil é o leitor



     Isto não é uma resenha. Faltam rigor, isenção e distanciamento. Por isso, tenho que confessar que escrevo este comentário sobre Coisas frágeis, de Neil Gaiman, ainda intoxicada de admiração e entusiasmo. Houve momentos durante a leitura em que tive vontade de ser Gaiman. Não queria os prêmios dele, que fez tudo por merecer, e acho até que foram poucos. Não queria o renome, a juventude dele. Queria tão só ter sido capaz de escrever esse livro.
     Há muito tempo não releio uma obra. E tenho lido coisas muito boas, como os poemas de Leonardo Fróes, obras de Enrique Vila-Matas, Amós Oz, Dino Buzzati, Ricardo Piglia. Também nunca fui muito chegada a fantasias, bestsellers ou não. Raramente gostei de uma história que fosse além da realidade como a conhecemos, e assim de pronto só me lembro de ter adorado A outra volta do parafuso, de Henry James, ou as histórias mais para simbólicas de Italo Calvino. Mas tanto uma como as outras não pretendem assustar, fazer profecias ou causar espanto em ninguém. Ultrapassam a realidade conhecida com um objetivo ficcional, e acredito que seja esse o motivo principal de conquistarem o leitor com sua prosa surpreendente, mas não escapista ou alienante.
     Coisas frágeis, no entanto, é bem mais que um livro que se dá ao luxo de recorrer ao sobrenatural para reforçar um enredo, como acontece com o romance de James, ou exaltar a poesia das coisas, como faz Calvino em As cidades inivísíveis, inventando lugares inexistentes para avivar sentimentos e emoções que tratamos como lugares comuns no cotidiano ou no máximo merecem poemas previsíveis. Coisas frágeis simplesmente vai além da fronteira dos sentidos quase como uma homenagem à experiência sensível; um aprofundamento, uma espécie de pedagogia do real, um método que é como uma agravante. Isso fica patente na própria introdução, quando o autor escreve: “Parecia um belo título para um livro de contos. Afinal, existem tantas coisas frágeis. Pessoas se despedaçam tão facilmente, sonhos e corações também.”
     Acredito que toda a beleza soturna e estranha dos contos de Gaiman esteja baseada numa fabulação que não só desce às profundezas da dor humana, como se percebe no confrangedor “Lembranças e tesouros” ou em “O problema de Susan” – este último tomando como mote um dos Contos de Nárnia – mas também faz um levantamento magistral das extravagâncias de que somos capazes. Além disso, há a criatividade inacreditável de textos como “A vez de outubro”, “Os fatos no caso da partida da senhorita Finch” ou “Golias”, que ele escreveu por encomenda, para a divulgação do filme Matrix.
     Uma seleção de contos que não poderia ser mais feliz, de um autor de talento incomum, que além do mais expõe seu lado gente na introdução onde nos põe a par do processo por que passou cada narrativa – o que me parece de uma consideração apreciável com seus leitores. Haverá quem argumente que ele fez isso para se exibir um pouco mais. Paciência. As pessoas nunca ficam mesmo dentro dos limites do racional.

11 comentários:

Quintanilha F R disse...

gostei da dica
e da imagem da cabana de Baba Yaga

=)

jurisdrops disse...

Está anotado. Essa resenha, que você prefere dizer que não é, deu ímpetos de sair agora mesmo no meio da chuvarada para não fragilizar aquele desejo terrível de não desistir até achar o livro.
Beijos

Tania regina Contreiras disse...

Ah, não sei se uma resenha precise, mesmo, a rigor desse distanciamento todo - será assim? E por que tem que ser assim? Já otítulo me fisgou. Coisas frágeis me fisgam mesmo por atravessarem uma linha tênue que nos separa de realidades mais sensíveis. Dizer o quê? Vontade de ir além dos sentidos, de ler o livro...Por ora registro, cheia de vontade!
Abraços,
Tânia

Fred Matos disse...

"Faltam rigor, isenção e distanciamento. Por isso, tenho que confessar que escrevo este comentário sobre Coisas frágeis, de Neil Gaiman, ainda intoxicada de admiração e entusiasmo."

Pois eu não confio crítica, resenha, comentário, que se diga isenta. Até porque não há realmente nenhuma possibilidade de isenção na crítica.

Boa dica, Dade, e ótimo texto.

Ótimo fim de semana.
Beijos

Gerana Damulakis disse...

Pela 1ª vez discordamos, dade: não gostei de Coisa frágeis.

Anônimo disse...

Anotadíssimo. Contagiante o seu fascínio. O pouco que a conheço classifica sua opinião como verdade.
Abs

Gerana Damulakis disse...

Dade: como você, não costumo gostar do fantástico. E, como você, faço exceção para a novela de Henry James (que já li diversas vezes, em épocas diferentes, com igual agrado) e o fascinante Italo Calvino (aquela trilogia, que maravilha, relerei algum dia, nem que seja apenas O visconde partido ao meio). Mas, Coisas frágeis não me pegou. Deve ser questão de estilo. Não importa a história, é o estilo que seduz, ou não.

Anônimo disse...

Concordo com você, Dade. Neil Gaiman é um autor de grande talento e criatividade incomum. Coisas Frágeis é um livro delicioso de ler, e a fantasia que ele mobiliza em seus contos é mesmo uma espécie de ênfase da realidade. Sem falar na maestria da narrativa. Beijo afetuoso do Ivan.

Mari Amorim disse...

O Amor nunca deverá ser responsabilizado por dores,perdas ou danos e tem amplos poderes para neutralizar todas as batalhas, sejam elas emocionais, familiares ou sociais...FELIZ DIA DO AMIGO,
BOAS ENERGIAS!
Beijos,
Mari Amorim
Brincando Com a Rima

Graça Pires disse...

Obrigada pela referência. Fiquei cheia de vontade de ler o livro.
Um beijo.

nostodoslemos disse...

Um mundo novo se descortina aqui... frágil é o leitor.

Parabéns!