sexta-feira, 19 de março de 2010

Pensamentos de janela



Foto Alfredo Muñoz de Oliveira.




Estava eu na janela a contemplar os galhos da amendoeira fronteiriça (uia!), quando me veio à cabeça que entre as ideias de estar e ter há nuances quase tão fogosas quanto as conhecidas diferenças entre ser e ter, que já se tornaram meio clichê – o que é mau, desgastante para uma ideia que vale a pena desenrolar de vez em quando.


A gente vive tão massacrada pela filosofia de mercado/lucro que se infiltra em nosso cotidiano, que há quem pense em mudar para as montanhas do Tibet e viver de leite de cabra e frutos silvestres, tecendo a própria túnica e dormindo numa gruta forrada de capim seco. Não seria uma rima nem uma solução, porque estaríamos perdendo os melhores filmes do ano, House e o sorvete de pavê, além dos riscos de faltar repelente de mosquitos e vacina contra veneno de cobra. Quem nasceu pra civilizado ocidental nunca chega a monge budista.


As diferenças entre estar e ter têm a ver com o instante (vide Clarice e o instante-já), única parcela do tempo com que podemos mesmo contar – e que dura... um instante – e o consumo, com todos os envolvimentos que ele supõe e dos quais é impossível fugir. O rolo compressor do mercado ameaça diluir nossos instantes, levando-nos a comprar o que talvez nos fosse inteiramente indiferente sem esse estímulo. O gosto e a criatividade são atingidos pela gosma invasiva da propaganda e pelos imperativos do lucro alheio. É um preço alto demais. Por sua vez, a mídia só colabora com esse estado de coisas, porque também precisa vender seus produtos.


Até a auto-estima está vendida ao mercado, porque só se considera vencedor quem faz dinheiro para si e para quem se dispõe a patrociná-lo. A maior parte da sociedade se marginaliza, escravizada por subempregos, sem falar na parcela dos que buscam afirmação e qualidade de vida na ilegalidade e no crime, nem sempre por falta de recursos, mas por motivos que vão de tendências de caráter a influências negativas do próprio meio.


Já que não dá mesmo pra escapar, é preciso aprender a enfrentar o bicho. Acredito que ajuda um certo descompromisso com os valores vigentes (a maioria deles sugeridos pelas mensagens da propaganda), porque a vida é aqui e agora, e não temos a menor ideia de até quando chegaremos. Não quer dizer desbunde geral, não mesmo. Quer dizer apenas certa autonomia que permita viver mais intensamente o instante-já de que falava Clarice, e que dura o tempo em que a roda em movimento toca o chão. Ir o mais fundo possível naquilo que temos prazer em fazer. Curtir as pessoas importantes para nós, viver o amor de modo pleno, realizar projetos sem comodismo – enfim, ir até onde se puder chegar, tornando a vida uma sucessão de instantes que valha a pena lembrar. O próprio trabalho pode dar muito prazer a quem o faz e gosta do que faz.


Não é preciso ter muito. O essencial é estar bem, estar inteiro no momento em que se vive. Para isso servem o coração e os sentidos, a memória e as mãos, o corpo e o pensamento.

15 comentários:

Anônimo disse...

Dade, você escreveu:

"Acredito que ajuda um certo descompromisso com os valores vigentes (a maioria deles sugeridos pelas mensagens da propaganda), porque a vida é aqui e agora, e não temos a menor ideia de até quando chegaremos"

Tem razão, mas esse descompromisso hoje é quase impossível! Tá certo, você mesma reconhece essa dificuldade ao usar a expressão certa autonomia. Porém, embora ache que o "pulo do gato" está aí, considero difícil para qualquer pessoa comum executá-lo.

Ah, e adorei a frase "Quem nasceu pra civilizado nunca chega a monge budista"! Vou já, já colocar nos meus perfis do Orkut e do Facebook

Um abraço!

Anônimo disse...

Não posso esquecer: "civilizado ocidental", bem entendido.

Em@ disse...

Oi, Dade, como está?
Tenho tido dificuldade em aceder ao seu blog porque não o consigo abrir...o pc bloqueia. Mas hoje não houve problema.
Gostei do seu post (como geralmente acontece) e posso adiantar-lhe ,que desde há dois anos, adoptei como filosofia de vida , precisamente, viver o momento ou, se tanto, um dia de cada vez. Às vezes precisamos levar um abanão na nossa saúde para relativizar as coisas e só dar importância aquilo que na realidade tem (incluindo as pessoas).
Beijo e 1 bom fim-de-semana.

Em@ disse...

esqueci referir que acei esta fotografia um must! *****!parabéns pela escolha e ao seu autor também (mesmo que não o conheça eheheh)

Celso Ramos disse...

Olha ài Dade tô contigo e não abro!!
Eu mesmo não chego a ser um ermitão mais gosto de ficar no meu canto.... abomino shopping center..espaço que é excludente por sua própria natureza consumista..vivo bem sem cartão de crédito e honrando nossos compromissos( isso incluí os gastos com Pedro) se sobrar um troco pra um livro...estamos bem!!! O fato é que há uma certa invisibilidade reguladora que permeia a vida contemporânea dizendo tacitamente quem pode o que!! (Foucault me parece tratar deste assunto muito bem). Já não nos deslumbramos mais...pois tudo é vaidade como dizia o sábio Salomão!!!
No mais...OOOOOMMMMMMMMMMM....(um som do universo pra você também)

Inês disse...

Tem dias em que eu quero partir e ir viver com os pássaros e roedores.
Acredito no descompromisso com esses valores podres vendidos pela tv e pelo rádio.
Um abraço!
Inês.

ALUISIO CAVALCANTE JR disse...

Amiga.

Acredito que podemos ser felizes onde estivermos.
Agora é preciso colocar
os nossos sonhos diante de nós
e dizermos: vocês não morrerão.
Ao assumir este compromisso,
reencontramos o caminho do amor,
do afeto,
da esperança,
e nos afastamos do consumismo exagerado
e do individualismo irracional.


Que teu coração seja sempre casa de alegria.

Anônimo disse...

É difícil abstrair da realidade "civilizada ocidental", ela nos envolve como um grande polvo onipresente. Mas é preciso tentar, e nisso concordo inteiramente com você e essa performance reflexiva que você consegue realizar. Gosto demais.

Beijo do Enylton

Barbara disse...

Inteireza - até desconfio que isso custa mais a nós do que custa aos monges todo o esforço prá tal da santidade, ou da paz, ou de sei lá o quê ( não sei porque não conheço, está claro).

Gerana Damulakis disse...

Êta texto danado de bom. E como concordo com o que está escrito.

Anônimo disse...

Civilizado ocidental pode ser tão bom ou feliz quanto monge budista, não pode? Aqui e agora, em nosso tempo, em nossa cidade ou qualquer outra deste lado do mundo.
Beijo, flor
AnaG

jurisdrops disse...

Dade:
Você diz de um jeito tão claro, que o texto fica espelhado nas águas límpidas da foto que o encabeça. De fato, o importante é começarmos a gostar dos parafusos, mesmo em dias de chuva, como fez a Macabéa.
Beijos

Graça Pires disse...

"Não é preciso ter muito. O essencial é estar bem, estar inteiro no momento em que se vive. Para isso servem o coração e os sentidos, a memória e as mãos, o corpo e o pensamento"
Não posso estar mais de acordo...
E vivam os sonhadores!
Beijos.

J.C. Cavalcanti disse...

Parabéns pelo blog... realmente encantador, adorei.


www.juliocesarcavalcanti.blogspot.com

J.C. Cavalcanti disse...

Parabéns pelo blog... realmente encantador, adorei.


www.juliocesarcavalcanti.blogspot.com