terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A classe média por ela mesma



Tirando a bruxa do segundo andar e a muambeira do quatrocentos e três, nosso prédio é um lugar de pessoas de renda acima da média. Não sei por que razão insistem em deixar jornais velhos e garrafas junto à coluna da lixeira, quando já ficou decidido em reunião do condomínio que essas coisas deviam ser entregues diretamente na portaria para serem encaminhadas ao lixo reciclável. Dona Uiara diz que a Conlurb não separa o lixo, e por isso ela acha uma perda de tempo tantos escrúpulos.
O doutor Rocha, da cobertura, fez uma de suas raras intervenções na reunião, opinando com autoridade, para dizer que os costumes das favelas estão enfim chegando às habitações da classe média. Por falta de cultura, visão de mundo estreita e pela mediocridade e tendência à acomodação que há décadas nos caracterizam, cedemos cada vez mais depressa à mentalidade e ao modo de vida pobre, mas vigoroso, desses bárbaros. Ao zunzum que se seguiu a sua fala, acrescentou que, et pour cause, os favelados são hoje a força mais poderosa da cidade, que haverá de esmagar os preconceitos e pruridos da gente que se vê como socialmente superior por causa de suas posses. Não falo da força das armas e do crime, que também devem ser levados em conta – e como! – mas da força que emana dessa gente lutadora, corajosa e disponível – e contudo, infelizmente, semi-analfabeta – que compõe um estrato poderoso e revestido da autoridade que confere (hélàs!) a superioridade moral.
Triunfal, de dedo em riste, acrescentou que nossa classe é preterida pelo Estado, desdenhada pelos mais pobres, roída pela culpa de seu próprio imobilismo e preguiçosa demais para reagir a esse estado de coisas. Ruirá portanto por força do desemprego, da falta daquelas colocações das quais depende para viver, uma vez que lhe falta criatividade para mudar o rumo dos acontecimentos e nem escolher bons representantes lhe é dado; por força das drogas e da bebida que consome em excesso, do relaxamento moral com que solapa os fundamentos da família; ruirá também sob o desprezo dos mais ricos e poderosos e por força da ignorância, incúria e arrogância que embalam suas vidas na rede da inoperância. E, diante dos rostos assustados dos condôminos, finalizou, tonitruante: ai de ti, classe miserável, que atiras fora o que te foi dado pelo esforço e suor de teus antepassados! Ai de ti, porque não conheces a misericórdia nem a compaixão, porque és egoísta e maldosa e nada soubeste construir com tua miopia senão um reino de estúpidas pretensões sem alicerces na realidade.

9 comentários:

Anônimo disse...

FÁ...muito, muito legal.Gostei muito e me diverti identificando personagens.Beijão.Fá

Anônimo disse...

Desde já, proclamo: DOUTOR ROCHA PARA PREFEITO DO RIO DE JANEIRO!

Brincadeirinha...

Um abraço.

ana v. disse...

Querida Adelaide, passo para deixar um beijo. Quanto aos seus textos, você sabe como gosto de lê-los sempre.

Mais um beijo!

Graça Pires disse...

Um texto que diverte e faz pensar que o comportamento das pessoas não está ligado ao poder económico...
Adorei ler. Um beijo.

Marcelo F. Carvalho disse...

A Classe Média sempre foi um dilema: nem é pobre, nem é rica. Típico caso de personalidade (?) construída na esperança de, um dia, os dominantes dizerem "oi".

Anônimo disse...

Dade, que outro bom espaço vc tem!
Puxa, vc é surpreendente! E este lado do humor é delicioso, viu? rs...
Adorei todos os textos. Mas, como dizem, ninguém pode ser bom impunemente...rs... me aguarde!
Beijocas

Janaina Amado disse...

Texto divertido, Adelaide. Um livro só com textos de reuniões de condomínio, escrito desse modo seu, seria legal, hein? Ao menos, é um meio de reciclar, transforma-se loucura em literatura... Abração.

Cris disse...

Muito bem, Adelaide, fiquei imaginando essas figuras ...rsrsr
Crescemos nas diferenças mas também nos irritamos, não?

Beijo, querida.

Lord Broken Pottery disse...

Adelaide,
Embora haja muita verdade no que foi dito, por preferir o silêncio, na maioria das vezes, recuso-me a frequentar reuniões de condomínio. Vizinhos? Melhor não conhecê-los.
Grande beijo