Os longos pés de capim acompanhando a estrada do lado
direito refletem a luz dos faróis, que lhes dão uma aparência fantasmagórica.
Contornando a estrada, muralhas separam o carro da vista da Barra e seus
colares de lâmpadas enfileiradas no meio de uma poça de escuridão. Não é fácil
conter o engulho de silêncio que faz retroceder tudo que lhe vem à cabeça.
Volta-se na direção da noite, respira fundo o ar fresco que chega ainda
cheirando um pouco a maresia.
Amanhã começo uma nova tela. Amanhã começo outra
vida. Amanhã viro outra pessoa e deixo de me arrastar miseravelmente em
dependências. Vou voar amanhã. O vento na pele seca os lábios, incomoda os
olhos. Mas prefere abrir-se para a estrada como quem toma um novo rumo antes do
amanhecer, ainda no escuro. O que está vendo agora é a embalagem do presente
que chega amanhã. Impossível ver, mas sabe que é sua nova vida embrulhada em
treva. Nenhum prodígio. Nem tarô nem mapa astral. Tudo verdade, aqui e agora, e
volta o aperto no esterno, a garganta em nó. Nem sequer pode dizer o que é
enquanto viaja ao lado dele. Tem medo que a cabeça não segure tanta coisa ao
mesmo tempo, que possa explodir a qualquer momento.
Tá com sono? ele pergunta, desinteressado. Já estive,
diz, enigmática.
Ri em silêncio sem mexer a boca, dentro do plexo, do ventre à garganta. Ainda não é propriamente uma alegria, mas chega bem perto. É outro caminho que se prepara, o caminho escolhido. Uma serpente luminosa no escuro. Vai clarear daqui a pouco.
Ri em silêncio sem mexer a boca, dentro do plexo, do ventre à garganta. Ainda não é propriamente uma alegria, mas chega bem perto. É outro caminho que se prepara, o caminho escolhido. Uma serpente luminosa no escuro. Vai clarear daqui a pouco.
Que que aconteceu? Dessa vez fica difícil segurar o
riso. Nada, até aqui não aconteceu nada. Olhar de esguelha. Cê tá calada. Fala
alguma coisa aí. Tem vontade de responder que está capinando o terreno do dia
seguinte. Nem olha para o lado. Falar é inútil, quando se anda pelo
irremediável.
Há meses acordava balançando numa rede sobre o
abismo, um sonho repetido que a levara de volta à análise. Não havia leite
morno ou tranquilizante que a salvasse da inquietação da insônia. Afinal
percebeu que suas dores eram provisórias como as dores do parto, mas
definitivas como todo parto e seu produto. Tudo porque se recusava a se
converter no outro. Durante tanto tempo tentou mostrar, insinuar, explicar com
riqueza de detalhes, gritar até ficar rouca. E a resposta, única e cega: mas por
quê? Melhor esquecer. Os planos dele só a incluem transformada em outro ele, e
isso a aterroriza.
O capim parece em busca do céu, num exercício de
alongamento. As folhas não veem nem ouvem nem vibram nem choram. Nunca ouvi
falar em liberdade para o capim. Mas dentro das moitas até bichos noturnos
orquestram suas vidinhas. Durante algum tempo pensou que era livre, mas um dia
se olhou no espelho e viu uma figura desprezível. Estava em diluição.
Amanhã começa outra vida. Uma vida que rói as
vísceras, uma ansiedade florindo em redoma. Como será deixá-lo para trás? Como
será deixar de doer em segredo e passar a doer em liberdade rasgada? Agora
percebe a vida como miragem que renasce sempre. Talvez descubra que chegou ao
fim e não há mais nada a desejar, e afinal possa viver sua própria carne.
Mil vezes tramou essa noite. Mil vezes ela foi
ensaiada em desespero e paciência e agora irrompe diante dela, saciada de
planos e certezas. Um pouco de temor do desconhecido, é verdade. Uma felicidade
corrosiva. Minha vida é uma trama oriental, pensa e sorri, e afinal devo boa
parte disso a você, que me ajudou a tecer agonias e medo entre os fios. Mas
dispenso tua aprovação, não fujo como em outro tempo e também não sofro mais
por você. Não te consulto – grande novidade. Estou numa dimensão que você não
conhece e não está autorizado a frequentar. Agora me dou ao luxo de preparar
painéis e desenhos sem utilidade prática. Ainda não conheço todas as imagens
que vão se abrir como um céu, mas você não está nele.
Olha o perfil imutável a seu lado. Como você é fútil.
Pensa que sabe tudo. Pensa que já decidiu o destino do mundo. Amanhã é outro
dia. Ele percebe o olhar furtivo. Tá com enxaqueca outra vez? O riso explode,
escapa escandaloso. Pequeno gesto de reprovação: que boba, ele diz. Que é que
você tem na cabeça?
2 comentários:
Adorei a história!
Beijo Grande
Beleza pura!
Beijo do Ivan
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