Adelaide Amorim
Tu
queres ilha: despe-te das coisas,
Jorge
de Lima, Invenção de Orfeu
Olhou o homem alto de cabelos
grisalhos que se aproximava, absorto, os olhos perdidos em algum lugar de
tristeza. Rapidamente fixou as mãos dele, os dedos longos e fortes segurando o
cigarro.
“Não me viu” – pensou, e sem querer
completou o pensamento – “e se visse não ia dar a mínima.”
Por quê? Por que tinha que ser assim?
Os homens só olhavam para as outras. Nesses momentos era a imagem do cansaço, a
boca descaía, as rugas ao redor da boca se alongavam, os sulcos fininhos se
acentuavam em volta dos olhos. Lembrou os cabelos sem brilho, tinha esquecido
de novo de comprar aquele xampu que iria resolver tudo. Ou não.
O desalento tomou conta dela, e aí se
viu refletida na vidraça da tinturaria antiga da Marquês de Abrantes. Num gesto
reflexo levantou a cabeça e ergueu os ombros. Encolheu a barriga o mais que
pôde e deu em cheio com o olhar do porteiro do prédio ao lado. O homem percebeu
sua confusão e deslizou os olhos sonsamente com um meio-sorriso.
Pensamentos misturados e sem palavras
a deixavam muito aflita, e acabou tropeçando numa rachadura da calçada. Por que
tanta aflição? Sofria como se usasse seios postiços e um deles caísse de
repente em plena rua no meio dos passantes. Nada tão grave, só tinha tentado
uma postura que não era a dela, nunca ia ser. Só tinha criado um de seus
momentos de ilusão, mas logo esqueceria e voltaria a ser ela mesma, curvada e
sem jeito. Às vezes achava que sua vida era como uma dessas nuvenzinhas ralas
que vagam pelo céu ao sabor dos ventos. Nuvens como as linhas indecisas de sua
mão.
Não tinha sabido aproveitar as
oportunidades. Queria tanto ajudar as pessoas, ser útil e querida, que causava
desconfiança ou desconforto aos outros. Vivia contando suas gafes às colegas –
por que, se isso só reforçava a imagem que gostaria de desfazer? Precisava ter
mais dignidade, parar de contar tudo para todos, de se expor assim ao
julgamento de pessoas que nem a conheciam direito, parar de bancar a boba. Além
disso pedia licença demais, desculpas demais, preocupava-se demais com o
bem-estar dos outros, mesmo dos estranhos que cruzassem seu caminho. Isso não
lhe dava nenhum prazer, ao contrário, era como uma obrigação, quase uma compulsão
atropelando sua vontade. Qualquer miúdo interesse dos outros era maior que os
dela mesma. Sempre se exigia atitudes forçadas, excessivas, por isso vivia tão
cansada.
Aí entendeu o miolo da coisa: a
aflição era justamente ser esse irremediável. “Primeiro é preciso a gente mesma
acreditar e depois os outros vão se convencendo”, pensou, e de novo pisou em
falso. O pensamento não lhe agradava, antes a fazia sentir-se ainda mais
deplorável, como se estivesse recorrendo a expedientes de mentira.
Estava sozinha agora como sempre tinha
estado. Só lhe restava viver dos pequenos gestos de todo dia e esperar. Seria
mesmo verdade que as melhores coisas da vida só acontecem quando se está
distraído?
2 comentários:
Delícia de ler, Dade!
Beijos do Ivan
Gosto sempre de suas histórias, Dade!
Beijo
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