
Sofrimento que ninguém descreve,
como um peso na alma [...]
é a dor das águas que o moinho moi, é a
dor que não sabe onde é que doi.
Dante Milano
Vivemos num
tempo de fragmentação cultural e subjetiva. Um tempo em que a dor,
a morte, o amor, a alegria, o sucesso e o fracasso das pessoas que a
mídia
escolhe para melhor vender seus produtos são tratados como peças de um game
de proporções globais. A mesma pessoa, às vezes voluntariamente exposta,
outras
vitimada ou incensada por alguma espécie de notoriedade que a torna de
interesse público, ganha faces diferentes e até contraditórias, segundo o
veículo e o repórter ou comentarista.
Os fatos são avaliados, analisados, discutidos, dissecados,
julgados e
definidos por diversos critérios, em polêmicas que parecem sérias, mas
na
verdade perdem qualquer credibilidade quando se observa com isenção tudo
que se
comenta e sentencia a respeito. Falta lógica, falta objetividade e, como
se o mundo
se tivesse tornado uma torre de Babel, cada qual fala uma língua, sem
entender
nem se preocupar com a do outro, e todos são donos da verdade.
A intelligentsia-classe-média,
representada pela mídia de mais recursos
e poder, toma conta dos assuntos e manipula opiniões, às vezes
respeitáveis,
para dar ao público uma resposta capaz de aplacar inquietações, dúvidas e
escrúpulos. Podemos dormir tranquilos. Afinal, quem somos nós, pobres
anônimos,
pra pensar diferente? Assim se encerra a polêmica e cada qual veste a
opinião
alheia a seu jeito, como quem veste uma roupa de segunda mão vendida
pelos
jornais, revistas, canais de televisão, noticiários radiofônicos.
Armado o jogo, vilões, mocinhos,
princesas, bandidos, vítimas e algozes ficam
nítidos e fáceis de entender. E o drama, a dor alheia, a notícia
pungente da
primeira manchete ganham um colorido atraente, confortável, divertido
até.
O príncipe pouco
romântico casou com a amante feiosa, mas como ousaram quebrar
o padrão consagrado dos amores principescos, caíram num irremediável
ridículo.
A moça que
vegetava (será mesmo que vegetava? Alguém pensou e sentiu com seu
cérebro, percorreu as terminações nervosas de seu corpo, experimentou as
sinapses que ainda funcionavam nela?), a moça que para todos os efeitos
vegetava foi eliminada aos olhos do mundo, sem ao menos gozar da paz e
da
privacidade que se supõem necessárias a quem vai morrer.
O papa Paulo VI entrou no período final
de sua vida e foi filmado, fotografado,
visto e revisto enquanto a agonia tomava conta dele em plena janela
aberta do
Palácio do Vaticano, ao vivo e em cores. E quando já nem esse espetáculo
angustioso podiam oferecer, filmaram sua oração calada e humilhada de
costas
para as câmeras. Qual o sentido dessa notícia, dessas imagens?
Talvez essas figuras, configuradas para
o consumo, travestidas de informação,
sirvam como um bom suporte para a projeção das dores de cada um, dos
conflitos
subjetivos, anônimos, que não têm solução ou impõem tanto esforço, tanto
desgaste e sofrimento.
Talvez
assistindo ao tormento e à agonia alheios, deixando-nos envolver num
drama, real ou inventado, que não é nosso, o tempo passe mais depressa e
nos
poupe de nossa própria dor. Talvez, chorando de pena daquela figura
virtual,
minha perda fique mais suave, o amor rasgado e o silêncio de uma
ausência em
minha vida se percam no burburinho que me cerca. Ou o trabalho
mal-remunerado,
o convívio desgastante, as frustrações, aquilo que grita e pesa dentro
de cada
um silenciem um pouco.
É
tão mais duro e tão mais difícil olhar de frente o que se passa em nós!
Temos
desejos que nunca se realizam. Sentimos hostilidade por pessoas que não
podemos
agredir ou afastar; é tanta a ansiedade, angústia que não se sabe de
onde vem,
tristeza, depressão. Sem que se perceba, a vida individual fica ainda
mais
vazia diante do grandioso espetáculo das imagens misteriosamente
importantes,
belas, mágicas, que merecem retratos coloridos e sorriem sempre,
inatingíveis.
Mas não faz mal que nossos problemas fiquem ainda mais agudos, se temos
um
anestésico tão poderoso. Sofre-se menos, quando se faz parte da imensa
multidão
para quem a vida vai passando em branco