
A boneca está meio desconjuntada, braços de pano pendentes, cara de nada absoluto. Que bobagem, isso é uma contradição em termos. Como pode ser o nada absoluto, se é uma boneca, mesmo assim, quase se desfazendo? Verdade que existe o tempo – parte dela já virou pó, já não é a boneca que foi a princípio. E se não é mais aquela do início, começou a navegar no nada. Fico solidária mas um pouco assustada. O nada absoluto está em meu rosto também.

A formiga carrega seu pedaço de folha pelo caminho de pedra. Está no jardinzinho bem tratado, cheio de cores, que fica bem no centro do planeta e bem debaixo do pedaço da Via Láctea que protege nossos telhados.

Para mim ele está lá, mas o lá onde ele está é o aqui dele. Então podemos concluir que todos nós estamos em pelo menos dois lugares ao mesmo tempo. E ainda dizem que só santo Antônio tinha o dom da ubiquidade.

Daqui do escritório, tenho a sensação nítida de que lá dentro, na sala e nos quartos, talvez na cozinha, estão meus pais, meu irmão que morreu novinho, meus tios e avós. Experimento a sensação bem viva dos primeiros anos, quando morava com eles. Às vezes havia alguém mais. Não posso afirmar nada, já que estou aqui no escritório e não dá pra ver o resto da casa.

Perspectiva e seu grande amor, Sofisma, moram em bairros separados, Razão e Imaginação. Têm uma bela prole que aumenta toda vez que um deles vai visitar o outro. Uma de suas filhas, chamada Mentira, ficou muito famosa e tem numerosos imitadores. Mas a filha que mais influencia as pessoas é Ilusão, uma linda moça de enormes olhos verdes, que anda sempre viajando no Mundo da Lua.