
Em tempos de mea culpa, os inocentes sofrem por tabela. Bom, não sei se inocente será a palavra certa neste caso, porque de inocentes nós, adultos, não temos nada. Nem nunca tivemos, que Adão e Eva não me deixem mentir. Por outro lado, a Bíblia e a literatura, oriental e ocidental, estão recheadas de narrativas sobre traições, inveja, calúnias e personagens desconstruídos pela malícia de inimigos ou supostos amigos.
Há casos tão pungentes, porém, que parecem respingar em nós, mesmo separados por décadas dos envolvidos. Como todo mundo já sacou, estou falando de Wilson Simonal, que agora ocupa as primeiras páginas da mídia impressa e os noticiários de televisão, além dos sites mais badalados da internet. O que aconteceu com ele foi um exemplo assustador e paradigmático das voltas que a vida pode dar. Os motivos, assim à primeira vista, parecem envolver, de um lado, fanfarronice, muita vaidade e deslumbramento, e de outro, muita inveja, ódio e oportunismo político.
Nada poderia ser mais esclarecedor sobre o caso Simonal que o documentário dirigido com talento e isenção pelo "Casseta" Claudio Manoel, junto com Calvito Leal e Micael Langer. Um bom trabalho jornalístico, bem documentado, com uma visão tão equilibrada quanto possível do caso e uma dose de compaixão pelo sofrimento humano que encerra – além da intenção, justa e bem-sucedida, de reafirmar o valor artístico de nosso primeiro grande astro pop para as gerações que nem ouviram falar dele.
O filme está no Twitter e praticamente em todos os sites de jornalismo e informação da rede. Há uma boa entrevista de Claudio Manuel, um dos diretores do filme, no Esquina da Música, que traz também uma ótima coluna de Luiz Felipe Carneiro sobre a produção.
Em Cinema Nacional, encontra-se um texto bem esclarecedor sobre algumas pessoas envolvidas e detalhes da história.
Assistir à tragédia de Simonal – filho de uma doméstica, sem escola nem preparo, que muito depressa e por seu próprio talento se tornou o primeiro negro a alcançar um sucesso absoluto de público e crítica nunca visto no Brasil dos anos 1960 – é perceber cruamente até que ponto o deslumbramento diante da fama pode desconstruir um sucesso que se julgava indestrutível.
A história de Simonal é incômoda e doi, porque de algum modo faz seus contemporâneos se sentirem um pouco cúmplices de sua desgraça. Ou, num plano mais obscuro, leva as pessoas a perceberem o estranhamento da ameaça do que pode atingir qualquer um de nós, vindo de onde menos se espera. Até aqueles que antes o bajulavam ouviram e leram as acusações contra ele passivamente. E ainda que não tivessem meios de conhecer o outro lado das notícias (já que os tempos eram sombrios e a censura comia solta), nem pestanejaram em aceitá-las ou simplesmente passaram batidos pelo lugar do fogo cruzado e trataram de esquecer o ídolo, ajudando a enterrá-lo na depressão que acabou por jogá-lo no alcoolismo e na morte prematura.
A surra encomendada contra o contador do artista, Raphael Viviani, que supostamente andava metendo a mão em seu dinheiro, e a tortura que ele sofreu no recinto do temível DOPS, agravadas pelo narcisismo ingênuo do cantor, se encarregaram do resto, quando ele se gabou de ser “amigo dos homens”, num tempo em que a ditadura militar já perdera o apoio de muitos simpatizantes e só o medo a mantinha de pé.* O engajamento de Simonal era antes de tudo com a música, seu trabalho e seu talento, além da dedicação a um movimento negro ainda disperso e não institucional, que seus inimigos deixaram esquecida.
*Régis Tadeu, do Yahoo Notícias, escreveu uma boa coluna sobre a história de Simonal, e chama a atenção para detalhes que vale a pena lembrar.