
Jayme Ovalle com Otto Lara Resende e Vinicius de Moraes, muitas décadas atrás.
Ao contrário dos mitos clássicos ou tradicionais, cujas histórias passam de geração a geração um significado simbólico, certos mitos fabricados pela mídia resultam num processo de descaracterização acelerada de final quase sempre melancólico. Parece que, nesses casos, o candidato a mito deve topar tudo por quase nada – entendendo-se por “tudo” desde um banho de loja até a mudança de parceiro ou da própria imagem. Quinze ou dez minutos de fama já são tudo de bom. Demorou. Se tiver retrato no jornal e/ou aparição na tv, mesmo meteórica, foi bom demais.
A importância intrínseca do candidato pode ser nula. Por exemplo, o cara não é herói nem muito menos expert de coisa nenhuma; não tem a menor idéia de seu papel no mundo, porque só quer a fama, ainda que sem referencial que a justifique. É um ego com fermento, quase sempre oco; respeita bem pouco a si e aos outros, e faz qualquer negócio que chame a atenção do (nem sempre) respeitável público.
A esse tipo corresponde a definição do Houaiss:
6 Derivação: sentido figurado.
construção mental de algo idealizado, sem comprovação prática; idéia, estereótipo
Estariam nesse caso as figuras idealizadas daquele que se imagina capaz de incendiar corações por sua mera aparição e a “celebridade-tipo-Caras”, ideal dos obcecados pela fama.
O degrau superior aos que se satisfazem encarnando um estereótipo é o dos que aparecem por algum dinheiro ou chance de trabalho, tipo BBB ou programa de calouros, juntando assim o útil ao agradável. Ou nem tão agradável assim. Mesmo que a fama conseguida seja de burro, grosso ou péssimo caráter, nada disso importa, se daí advier alguma vantagem ou lucro. Nesse caso não se desce à condição lamentável de coisificação do nada. Se der azar, o lucro pode ser bem pequeno, mas é lucro, alguma coisa pra somar. Se não dignifica, ao menos gratifica.
De degrau em degrau, conhecemos os que conquistam uma condição equiparável à de mitos. São mitos de qualidade, e mesmo que alguém não se agrade de sua voz, do modo como representam ou das obras que realizam, tiveram trabalho, lutaram e sofreram para construir uma carreira; enfrentaram muito mais que os picaretas da mídia e a opinião de um público desqualificado. Nesses casos a fama não foi o objetivo, mas uma decorrência, nem foi uma gratificação precária que os mobilizou.
Não importa o que tiveram que enfrentar, se tiveram ou não quem os ajudasse a abrir caminho. Quase sempre conseguiram algum apoio, mas deram tudo de si para mostrar seu trabalho e um talento em que acreditaram e nos quais investiram. São muitas as histórias de gente que se impôs à admiração de quem sabe apreciá-los e respeitar seu valor. Existe até gente de grande qualidade pessoal e profissional que não chegou lá, não teve oportunidade ou nem procurou reconhecimento à altura.
Exemplo desse último caso foi Jayme Ovalle, cuja biografia escrita por Humberto Werneck vai ser lançada na Flip deste ano, num livro que se chama Jayme Ovalle – o santo sujo. Amigo da fina flor dos artistas, poetas e cronistas de seu tempo, Ovalle não deixou registradas senão amostras de seu trabalho. Na crônica “A porta do céu”, de 1955, Drummond se referiu a sua presença como “uma iluminação mística ou humorística”. Bandeira fala de sua “intuição prodigiosa”, Vinícius considerava sua linguagem poética e sua presença maravilhosas e Sabino disse dele que era “um dos maiores espetáculos de inteligência e intuição, através de sua capacidade de viver e pensar poeticamente”.* São dele as letras de Azulão e Modinha, que você não deve conhecer se tiver menos de 40, mas valem a pena.
Seria tão bom que os candidatos a mito-a-qualquer-preço percebessem a diferença entre somar ninharias e multiplicar talentos!
* Os dados são da Folha de São Paulo de sexta-feira, 27 de junho, caderno Ilustrada.