sexta-feira, 11 de abril de 2014

Vítima

Tinha um medo secreto de se tornar também uma vítima.
Toda sua vida, ela o sabia, estava comprometida, caso alguma acusação a levasse a Rogério.
Entre o receio que tantas vezes a dominava, fugia cada vez mais da presença daquele homem.
Sentia-se envelhecer, cansada e fraca.

quarta-feira, 19 de março de 2014

A boneca e o nada




Dentro da velha casa de bonecas
minha predileta está meio desconjuntada
braços de pano pendentes
cara de nada absoluto.

Bobagem ou contradição em termos
não pode ser o nada absoluto se ainda é uma boneca
mesmo quase desfeita
mas penso
:
parte dela virou pó
não é mais a boneca que foi
porque começa a navegar no nada.

Triste e um pouco assustada
olho o espelhinho da casa e percebo que
o nada absoluto está em meu rosto também.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Exercício da noite




     
Os longos pés de capim acompanhando a estrada do lado direito refletem a luz dos faróis, que lhes dão uma aparência fantasmagórica. Contornando a estrada, muralhas separam o carro da vista da Barra e seus colares de lâmpadas enfileiradas no meio de uma poça de escuridão. Não é fácil conter o engulho de silêncio que faz retroceder tudo que lhe vem à cabeça. Volta-se na direção da noite, respira fundo o ar fresco que chega ainda cheirando um pouco a maresia.
Amanhã começo uma nova tela. Amanhã começo outra vida. Amanhã viro outra pessoa e deixo de me arrastar miseravelmente em dependências. Vou voar amanhã. O vento na pele seca os lábios, incomoda os olhos. Mas prefere abrir-se para a estrada como quem toma um novo rumo antes do amanhecer, ainda no escuro. O que está vendo agora é a embalagem do presente que chega amanhã. Impossível ver, mas sabe que é sua nova vida embrulhada em treva. Nenhum prodígio. Nem tarô nem mapa astral. Tudo verdade, aqui e agora, e volta o aperto no esterno, a garganta em nó. Nem sequer pode dizer o que é enquanto viaja ao lado dele. Tem medo que a cabeça não segure tanta coisa ao mesmo tempo, que possa explodir a qualquer momento.
Tá com sono? ele pergunta, desinteressado. Já estive, diz, enigmática.
Ri em silêncio sem mexer a boca, dentro do plexo, do ventre à garganta. Ainda não é propriamente uma alegria, mas chega bem perto. É outro caminho que se prepara, o caminho escolhido. Uma serpente luminosa no escuro. Vai clarear daqui a pouco.
Que que aconteceu? Dessa vez fica difícil segurar o riso. Nada, até aqui não aconteceu nada. Olhar de esguelha. Cê tá calada. Fala alguma coisa aí. Tem vontade de responder que está capinando o terreno do dia seguinte. Nem olha para o lado. Falar é inútil, quando se anda pelo irremediável.
Há meses acordava balançando numa rede sobre o abismo, um sonho repetido que a levara de volta à análise. Não havia leite morno ou tranquilizante que a salvasse da inquietação da insônia. Afinal percebeu que suas dores eram provisórias como as dores do parto, mas definitivas como todo parto e seu produto. Tudo porque se recusava a se converter no outro. Durante tanto tempo tentou mostrar, insinuar, explicar com riqueza de detalhes, gritar até ficar rouca. E a resposta, única e cega: mas por quê? Melhor esquecer. Os planos dele só a incluem transformada em outro ele, e isso a aterroriza.
O capim parece em busca do céu, num exercício de alongamento. As folhas não veem nem ouvem nem vibram nem choram. Nunca ouvi falar em liberdade para o capim. Mas dentro das moitas até bichos noturnos orquestram suas vidinhas. Durante algum tempo pensou que era livre, mas um dia se olhou no espelho e viu uma figura desprezível. Estava em diluição.
Amanhã começa outra vida. Uma vida que rói as vísceras, uma ansiedade florindo em redoma. Como será deixá-lo para trás? Como será deixar de doer em segredo e passar a doer em liberdade rasgada? Agora percebe a vida como miragem que renasce sempre. Talvez descubra que chegou ao fim e não há mais nada a desejar, e afinal possa viver sua própria carne.
Mil vezes tramou essa noite. Mil vezes ela foi ensaiada em desespero e paciência e agora irrompe diante dela, saciada de planos e certezas. Um pouco de temor do desconhecido, é verdade. Uma felicidade corrosiva. Minha vida é uma trama oriental, pensa e sorri, e afinal devo boa parte disso a você, que me ajudou a tecer agonias e medo entre os fios. Mas dispenso tua aprovação, não fujo como em outro tempo e também não sofro mais por você. Não te consulto – grande novidade. Estou numa dimensão que você não conhece e não está autorizado a frequentar. Agora me dou ao luxo de preparar painéis e desenhos sem utilidade prática. Ainda não conheço todas as imagens que vão se abrir como um céu, mas você não está nele.
Olha o perfil imutável a seu lado. Como você é fútil. Pensa que sabe tudo. Pensa que já decidiu o destino do mundo. Amanhã é outro dia. Ele percebe o olhar furtivo. Tá com enxaqueca outra vez? O riso explode, escapa escandaloso. Pequeno gesto de reprovação: que boba, ele diz. Que é que você tem na cabeça?


sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Encontros e desencontros


O modo como as imagens têm sido tratadas em nosso mundo frenético é inadequado e irreverente, porque teima em ignorar a dignidade do que se vê.
Na linguagem do sonho as palavras se cristalizam em imagens. É frequente que um sonho apresente uma palavra – às vezes até uma frase – mas o que ela significa pertence à esfera subjetiva de quem sonha. Mistura-se às imagens com um valor equivalente, é parte do enigma do sonho.
Se refletirmos nesse fenômeno, fica mais fácil perceber por que uma imagem nunca é a mesma para todos que a veem. Se isso é verdade, não se podem tratar as imagens como objetos fabricados em série. Palavra e imagem têm uma longa história de encontros e desencontros. Ambas estão ligadas à percepção visual e à memória. Ambas vêm impregnadas de sentidos e mensagens de variação infinita – que o digam Andy Warhol e Vick Muniz.

A criação literária é o momento privilegiado da palavra, quando se convocam imagens e estados subjetivos em função de uma criação única e intransferível. A obra de criação é autobiográfica como o sonho, ainda que não seja confessional. O que se manifesta na obra de criação tem suas raízes firmemente cravadas na subjetividade. Há sempre um pouco de sonho na obra de criação.
Palavra e imagem se fundem num texto que irá afetar de modos diferentes seus leitores. As pesquisas sobre o tema demonstram que a recepção individual do texto literário se dá em uma zona de condensação organizada por um inconsciente e sua subjetividade. Os elementos que contam para o indivíduo que lê vão além dos conceitos vigentes da cultura e dos preceitos de sua sociedade – embora esses fatores sejam de grande importância.
A explicação disso se deve em parte à disjunção palavra-coisa. Descobrimos que fomos vitimados por uma série de separações, quando acontecimentos como perdas, mortes ou omissões se reduziam a palavras que deixavam escapar seu verdadeiro sentido. O passado não cabe nas palavras com que o evocamos porque não foi e não será como o recordamos ou falamos dele.
Por sua vez, a imagem pode exibir acontecimentos em outra dimensão, mas a ilusão de seu poder também é um risco. Não vale mais nem menos que a palavra: é diferente. Os limites, os vazios, as imprecisões e a multiplicidade das palavras e da linguagem têm uma espécie de contrapartida na imagem. As palavras reduzem e atenuam o real que a imagem resgata. Mas é bom estar atento a um engano também nesse domínio. A imagem reproduzida e divulgada ao ponto que a vemos na propaganda e na mídia se destina a criar novas ilusões, porque a experiência que ela oferece não é a experiência do real. Enquanto representação do real, a imagem merece respeito. Rebaixada a vendedora de ilusões e propagadora da mentira, é uma fraude lamentável, que faz da ilusão uma razão de viver.
Como em tudo nesta vida, o real tem que ser a medida de todas as coisas.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Do miniblog






Solidariedade + empatia + calor humano + cumplicidade = amizade – o metal mais raro e mais imitado na história da humanidade.

Eu vi: no meio da cidade violenta, um pombo sozinho atravessando a rua na faixa.

To follow, or not to follow, that's the Twitter.

De Augusto Monterrosso: "Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá." Prêmio de melhor miniconto.

TOC eletrônico é sem remédio. Cada era tem a torre de Babel que merece, né não?

Aranha malhada tem pernas grossas (provérbio tibetano).

Respeito todas as religiões, mas não entendo nem aceito alguns religiosos que não respeitam as convicções alheias.

Autocontrole é saber que espaço cada pessoa pode ocupar em sua vida e que palavras usar para lhe dizer o que pensa sem magoá-la.

Você muitas vezes não vê o que pensa que vê, e esse tem sido o motivo de tantos equívocos e desentendimentos entre os humanos.

Incentivar a leitura é coisa séria, e no Brasil é uma necessidade - a gente cresce pela leitura.

Bom senso informa: nem todo médico faz bem à saúde! Em casos complicados, consulte pelo menos três e adote práticas alternativas.

Político honesto é aquele que só se vende duas vezes se o primeiro comprador morrer antes dele.

Era uma menina de tornozelo irado, corpo malhado e cabeça feita. O que estragou tudo foi o coração mole.

Dentro do Brasil, tantos brasis; nos EUA, tantos euas; na China, tantas chinas. Dentro de cada pessoa, tantas pessoas.

Ser gente da melhor qualidade dispensa qualquer rótulo.

Ingratidão e burrice são amigas inseparáveis. Pode conferir.

Gostar é fácil, mas é preciso mais que isso pra conviver. A rotina carrega uma mochila cheia de camundongos esfomeados. Nada contra a rotina, até gosto dela. Mas que os camundongos são um risco, ninguém pode negar. O nome deles explica: o chefe do bando se chama egoísmo, mas há outros nomes significativos, como grosseria, comodismo, indiferença, interesse e deslealdade.

A internet é uma floresta, mas há clareiras que vale a pena conhecer.

Baby, flanar não tem nada a ver com flanela.

Segredo revelado é uma verdade que usava burca e virou stripper.

Testou o equilíbrio quando a megassena acumulada saiu pra ele sozinho. Passou a ter vertigem de altura.

Solidão é ver tudo nos lugares e ninguém para desarrumar.

Ser simples não é ser primário nem carente nem pobre. Ser simples é um charme que pouca gente conhece. E muitos não conseguem entender. Pena.

Arrogância são duas pernas de pau cheias de cupim.

A vida é um encontro marcado ao qual é melhor não faltar, porque não há outra chance.

Perdeu todas as boas oportunidades por dar importância demais à opinião dos outros. Nesse particular, saber usar a sintonia fina é decisivo.


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O planalto, os anjos e as estrelas

Eu podia falar de cidades velhas, empoeiradas, calçadas de lajes coloniais. Podia falar de um ar transparente, de um céu aceso de crepúsculo, montanhas intermináveis de veludo verde. podia descrever um rio que espelhava o céu, num dia claro ou umas árvores recortadas contra o azul, ou o ballet dos profetas, num balcão de igreja. Podia ainda pôr em meus relatórios um frio translúcido e devassante.
Seria fácil e agradável falar da hospitalidade, do carinho com que um povo recebe seus irmãos de outro estado, do calor e do riso alegre daquela gente. Das ruas, das ladeiras íngremes, das rosas puras, das rosas sensuais, das florinhas inconsequentes. Folhagens sobre o muros seculares. Das ruínas.
Podia falar de tanta coisa...
Mas não quero. O que eu trouxe, aquilo que achei bonito, foi compartilhado palmo a palmo. Foi bem vivido. Serviu de elo entre pessoas, foi comum. Um passo de ligação, que não se pode mais desfazer. Foi vida, mas passou. Teve  seu momento, deixou pegadas; agora há outros momentos, outros dias, outros crepúsculos, outros risos. Outros laços.
Além disso, um momento maior que todos. Este, sobretudo, é preciso calar. Vai perdurar mais, é um eco, além de uma lembrança.

O planalto do cruzeiro fica a umas cinco ladeiras do centro. O cume do mundo. Cinco ladeiras escuras,
onde os casebres vão rareando, os rostos na janela vão ficando para trás. É preciso deixar os rostos e as casas, quando se quer chegar ao planalto.  Um pouco misterioso.
Quando se conquista o planalto, ele está dormindo.
Coberto por um céu próximo, tão próximo que, ao primeiro assobio, toma de repente um sentido. O caminho de estrelas se anima, vibra, cintila, vai chegando mais e mais perto.
As estrelas escolhem modos diferentes de cair no planalto. Na noite em que estávamos lá, escolheram crianças. Eram uns dez ou doze, um número sagrado. Como não houvesse nuvens, vieram da escuridão, com grande alarido. Todos - eram sujos, maltrapilhos, magros. Só um, o menorzinho, era gordo e corado, com arzinho cruel nos olhos brilhantes. Notava-se claramente sua condição de anjo do aleijadinho. Ninguém dizia absolutamente nada.

Ninguém ficaria assustado vendo crianças espalhando pequenas chamas por um planalto escuro. Ninguém ficaria assustado ao ver crianças espalhando. Mas qualquer um desmaiaria de susto. se soubessem que eram anjos semeando estrelas.
Ficamos à volta da chama central. Nossas mãos terrestres são impuras. Mentimos, e vamos morrer nossas estrelas, que morriam a nossos pés. Arrastaram-nos para a borda do planalto, Desse dia em diante, ninguém mais vai se preocupar com um anjo que treme de frio.
Quando descemos já era tarde, bem tarde. As estrelas tinham sono, os anjos murcharam, pouco a pouco. Se o dia nos apanhasse ali, não haveria salvação. O planalto só existe à noite. Um milagre da noite.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Pedra sobre pedra





Augusto Nunes. A esperança estilhaçada. São Paulo: Planeta, 127p.

 Leitura fácil, a linguagem jornalística e o estilo sem maiores firulas fazem desse livro uma fonte de informação fácil de consultar e que à primeira vista merece todos os créditos.

Nunes traça retratos nítidos e bem-humorados dos personagens dignos de uma ópera bufa, que o PT e o governo trouxeram à cena da política nacional – e não só à cena política, mas também à policial. Paralelamente, faz um relato contundente dos acontecimentos que as CPIs ainda investigam, exprobrando comportamentos duvidosos, narrando cenas, encontros, conversas – enfim, usando de maneira competente e eficaz suas fontes e dados reunidos sobre o período que começa em outubro de 2004 e ainda não se esgotou.

Pintado por Nunes como ingênuo, vaidoso e imprudente, o governo foi capaz de se fazer amigo de infância de políticos cuja história de cumplicidade com Collor devia ter falado mais alto que interesses imediatos e no máximo autorizaria a presidente a uma aliança política transitória, nunca a um envolvimento pessoal. Não foram os únicos a merecer sem mérito. Nesses três anos, não faltaram exemplos, como a nomeação de figuras suspeitas ou incompetentes, e o próprio chefe da Casa Civil, José Dirceu, sob cuja gestão se formaram 92 grupos de trabalho sem que nada viesse a ser realizado, além da defesa mais ou menos discreta, mas sistemática, de picaretas e golpistas notórios. Não dá também para esquecer a luta que o governo e o PT travaram para evitar a instauração das CPIs. “O país descobriu se demite algum ministro se o suspeito for para a cadeia”, diz Nunes.

Nunes toma uma posição muito clara, sem rodeios nem dúvidas aparentes. Diante dos acontecimentos recentes e dos dados levantados pelas CPIs e pela Polícia Federal, não é difícil chegar a essa visão de contornos claros e firmes. Mas o autor vai mais longe, e faz a ponte que ligaria toda essa cadeia de crimes e corrupção à própria figura da presidente – prudentemente, sem acusações diretas nem reivindicações de impedimento, mas lamentando o triunfalismo que terminou por destruir grande parte do que poderia ter se consolidado como ganho do governo.