quarta-feira, 19 de março de 2014

A boneca e o nada




Dentro da velha casa de bonecas
minha predileta está meio desconjuntada
braços de pano pendentes
cara de nada absoluto.

Bobagem ou contradição em termos
não pode ser o nada absoluto se ainda é uma boneca
mesmo quase desfeita
mas penso
:
parte dela virou pó
não é mais a boneca que foi
porque começa a navegar no nada.

Triste e um pouco assustada
olho o espelhinho da casa e percebo que
o nada absoluto está em meu rosto também.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Exercício da noite




     
Os longos pés de capim acompanhando a estrada do lado direito refletem a luz dos faróis, que lhes dão uma aparência fantasmagórica. Contornando a estrada, muralhas separam o carro da vista da Barra e seus colares de lâmpadas enfileiradas no meio de uma poça de escuridão. Não é fácil conter o engulho de silêncio que faz retroceder tudo que lhe vem à cabeça. Volta-se na direção da noite, respira fundo o ar fresco que chega ainda cheirando um pouco a maresia.
Amanhã começo uma nova tela. Amanhã começo outra vida. Amanhã viro outra pessoa e deixo de me arrastar miseravelmente em dependências. Vou voar amanhã. O vento na pele seca os lábios, incomoda os olhos. Mas prefere abrir-se para a estrada como quem toma um novo rumo antes do amanhecer, ainda no escuro. O que está vendo agora é a embalagem do presente que chega amanhã. Impossível ver, mas sabe que é sua nova vida embrulhada em treva. Nenhum prodígio. Nem tarô nem mapa astral. Tudo verdade, aqui e agora, e volta o aperto no esterno, a garganta em nó. Nem sequer pode dizer o que é enquanto viaja ao lado dele. Tem medo que a cabeça não segure tanta coisa ao mesmo tempo, que possa explodir a qualquer momento.
Tá com sono? ele pergunta, desinteressado. Já estive, diz, enigmática.
Ri em silêncio sem mexer a boca, dentro do plexo, do ventre à garganta. Ainda não é propriamente uma alegria, mas chega bem perto. É outro caminho que se prepara, o caminho escolhido. Uma serpente luminosa no escuro. Vai clarear daqui a pouco.
Que que aconteceu? Dessa vez fica difícil segurar o riso. Nada, até aqui não aconteceu nada. Olhar de esguelha. Cê tá calada. Fala alguma coisa aí. Tem vontade de responder que está capinando o terreno do dia seguinte. Nem olha para o lado. Falar é inútil, quando se anda pelo irremediável.
Há meses acordava balançando numa rede sobre o abismo, um sonho repetido que a levara de volta à análise. Não havia leite morno ou tranquilizante que a salvasse da inquietação da insônia. Afinal percebeu que suas dores eram provisórias como as dores do parto, mas definitivas como todo parto e seu produto. Tudo porque se recusava a se converter no outro. Durante tanto tempo tentou mostrar, insinuar, explicar com riqueza de detalhes, gritar até ficar rouca. E a resposta, única e cega: mas por quê? Melhor esquecer. Os planos dele só a incluem transformada em outro ele, e isso a aterroriza.
O capim parece em busca do céu, num exercício de alongamento. As folhas não veem nem ouvem nem vibram nem choram. Nunca ouvi falar em liberdade para o capim. Mas dentro das moitas até bichos noturnos orquestram suas vidinhas. Durante algum tempo pensou que era livre, mas um dia se olhou no espelho e viu uma figura desprezível. Estava em diluição.
Amanhã começa outra vida. Uma vida que rói as vísceras, uma ansiedade florindo em redoma. Como será deixá-lo para trás? Como será deixar de doer em segredo e passar a doer em liberdade rasgada? Agora percebe a vida como miragem que renasce sempre. Talvez descubra que chegou ao fim e não há mais nada a desejar, e afinal possa viver sua própria carne.
Mil vezes tramou essa noite. Mil vezes ela foi ensaiada em desespero e paciência e agora irrompe diante dela, saciada de planos e certezas. Um pouco de temor do desconhecido, é verdade. Uma felicidade corrosiva. Minha vida é uma trama oriental, pensa e sorri, e afinal devo boa parte disso a você, que me ajudou a tecer agonias e medo entre os fios. Mas dispenso tua aprovação, não fujo como em outro tempo e também não sofro mais por você. Não te consulto – grande novidade. Estou numa dimensão que você não conhece e não está autorizado a frequentar. Agora me dou ao luxo de preparar painéis e desenhos sem utilidade prática. Ainda não conheço todas as imagens que vão se abrir como um céu, mas você não está nele.
Olha o perfil imutável a seu lado. Como você é fútil. Pensa que sabe tudo. Pensa que já decidiu o destino do mundo. Amanhã é outro dia. Ele percebe o olhar furtivo. Tá com enxaqueca outra vez? O riso explode, escapa escandaloso. Pequeno gesto de reprovação: que boba, ele diz. Que é que você tem na cabeça?