Um balão, um grande balão branco, restinho da noite de São João. Sabia que era proibido, mas não resistiu.
Devia ter vagado boa parte da noite, confundindo sua estrela dourada e móvel com as estrelas quietas e prateadas, ameaçando incendiar as nuvens. Deve estar cansado, ele pensou, é tão diferente de tudo que já vi em matéria de balão! No início seria talvez divertido conhecer lugares novos, a amplidão do céu, luzinhas, fitando-o sem parar de todos os lados.
Mas tudo cansa nesta vida. Devia sentir-se inútil, porque nada se beneficiava de sua mobilidade e não podia compreender a fixidez das estrelas, das nuvens, do próprio céu. As nuvens deslizam, vem de lá para cá, não tem personalidade como ele mesmo, desmancham-se, se contradizem. Além de tudo, ele lutava contra seu próprio fogo, que ameaçava reduzi-lo a cinzas. Contra o desespero do infinito, que não podia entender. Começou a achar que as estrelas eram de uma indiscrição abusiva.
Então, o grande balão branco, restinho da noite de São João, chorou. As lágrimas deslizaram para o horizonte e - milagre - o horizonte se incendiou pouco a pouco. Tudo foi ficando claro. Mesmo as estrelas não puderam resistir e fugiram. Cansado mas feliz, o balão se deixou levar. Mais uma vez, a liberdade tinha surgido das lágrimas.
segunda-feira, 26 de agosto de 2013
quarta-feira, 21 de agosto de 2013
A vila
Esse arzinho úmido após a chuva sempre mexe com minha alegria número oito, a mais discreta. Uma alegria tão discreta, que às vezes fico na dúvida, sem saber se é mesmo uma alegria.
À noite, lembra outras noites, já longínquas. Lembra um chão de cimento rachado, poças dágua, um tufo de mato escapando das rachas. muros cobertos de hera.
Naquele tempo, o mundo era limitado por um pomar à esquerda, um casarão à direita e uma rua sem calçamento. Habitavam-no dez pessoas, alguns vizinhos e alguns moleques. Às vezes havia tios e primos, uma avó de colo gostoso ou uma senhora gorda, que manchava de batom os biscoitos que mamãe lhe servia e puxava de uma perna. Havia também um médico de orelhas grandes e olhos pequenos, que fazia brincadeiras muito engraçadas. Suas visitas coincidiam com um céu profundamente azul, que me dava um aperto na boca do estômago.
Havia ainda os imensos sapos encantados. Eram negros, luzidios, de olhos cintilantes, e nós os fazíamos pular uma varinha. Mas só nas áreas iluminadas, porque nos escuro eles ficam bravos e jogam um líquido capaz de cegar as pessoas.
Havia estrelas puríssimas, penduradas nos galhos das árvores. Nós as colhíamos e serviam de adereço nas brincadeiras mais sofisticadas, como princesa, rainha, cinema, aventuras. Enfeitavam véus diáfanos, de mistura com as roupas das histórias de Monteiro Lobato. Aí aconteciam lances trágicos, suspense, dramatizações suntuosas em florestas encantadas, salões de baile e haréns. Sem esquecer, é claro, as emocionantes aventuras dos castelos deslumbrantes ou assombrados. Dos navios piratas em pleno mar alto.
A vila era céu azul, com ou sem nuvens. Podia também ser um cemitério à meia noite, praia ou piscina.
Um dia, não me contive e fui rever a vila grande, clara, alegre, cheia de folhas verdes por todos os lados. Fui buscar um sol morno e dourado, que me fez feliz como poucas vezes consegui ser depois, Ouvi um coro de roda. Olhei os tufos de mato e as poças jeitosas. Ver como estavam as florestas, o salão, o castelo, o mar e o sol, o cemitério. Fui buscar pureza, colher estrelas, sacudir os galhos das árvores, espantar sapos encantados.
Mas nada disso aconteceu. Chorei sobre uma vila estreita, pequena e suja, de chão de cimento liso, sem plantas, de casas duras, pintadas de novo. As janelas me olharam com a severidade dos mortos. As portas sorriram frias, hostís. Não nascem mais estrelas nas árvores ao lado.
À noite, lembra outras noites, já longínquas. Lembra um chão de cimento rachado, poças dágua, um tufo de mato escapando das rachas. muros cobertos de hera.
Naquele tempo, o mundo era limitado por um pomar à esquerda, um casarão à direita e uma rua sem calçamento. Habitavam-no dez pessoas, alguns vizinhos e alguns moleques. Às vezes havia tios e primos, uma avó de colo gostoso ou uma senhora gorda, que manchava de batom os biscoitos que mamãe lhe servia e puxava de uma perna. Havia também um médico de orelhas grandes e olhos pequenos, que fazia brincadeiras muito engraçadas. Suas visitas coincidiam com um céu profundamente azul, que me dava um aperto na boca do estômago.
Havia ainda os imensos sapos encantados. Eram negros, luzidios, de olhos cintilantes, e nós os fazíamos pular uma varinha. Mas só nas áreas iluminadas, porque nos escuro eles ficam bravos e jogam um líquido capaz de cegar as pessoas.
Havia estrelas puríssimas, penduradas nos galhos das árvores. Nós as colhíamos e serviam de adereço nas brincadeiras mais sofisticadas, como princesa, rainha, cinema, aventuras. Enfeitavam véus diáfanos, de mistura com as roupas das histórias de Monteiro Lobato. Aí aconteciam lances trágicos, suspense, dramatizações suntuosas em florestas encantadas, salões de baile e haréns. Sem esquecer, é claro, as emocionantes aventuras dos castelos deslumbrantes ou assombrados. Dos navios piratas em pleno mar alto.
A vila era céu azul, com ou sem nuvens. Podia também ser um cemitério à meia noite, praia ou piscina.
Um dia, não me contive e fui rever a vila grande, clara, alegre, cheia de folhas verdes por todos os lados. Fui buscar um sol morno e dourado, que me fez feliz como poucas vezes consegui ser depois, Ouvi um coro de roda. Olhei os tufos de mato e as poças jeitosas. Ver como estavam as florestas, o salão, o castelo, o mar e o sol, o cemitério. Fui buscar pureza, colher estrelas, sacudir os galhos das árvores, espantar sapos encantados.
Mas nada disso aconteceu. Chorei sobre uma vila estreita, pequena e suja, de chão de cimento liso, sem plantas, de casas duras, pintadas de novo. As janelas me olharam com a severidade dos mortos. As portas sorriram frias, hostís. Não nascem mais estrelas nas árvores ao lado.
quinta-feira, 15 de agosto de 2013
O cine Metro
Às
vezes as coisas podem acabar bem. Experiência própria. Tinha um medo
supersticioso de confessar isso. Quebrei o tabu, desmanchei a crendice e abri o
jogo num fim de sábado em maio. Mês dos finais felizes.
Mamãe
ia comigo ao cinema. Andávamos de casa até a praça Saenz Peña, não era longe,
dez a quinze minutos a pé. O hall de entrada do cine Metro era gelado, chegava
um frio delicioso lá de dentro. Naquele tempo não fazia o frio que faz hoje no
Rio. O lugar pedia drops de hortelã, o verde, redondo, de embalagem também
verde com as pontas prateadas. Só depois apareceu o quadradinho, embrulhado um
a um.
Era
o bom começo. O cheiro de ambiente fechado se espalhava como uma surpresa pela
sala de espera. Havia tapetes vermelhos nas escadas que levavam à sala de
projeção, passadeiras presas por tubos de metal bem dourado. Era luxuosa, a
sala, art-déco meio art-nouveau, balcão de balas à direita
dos que entravam pela roleta geladinha. E lá dentro as poltronas macias, fria
escuridão que lhes escondia a cor, talvez vermelha. Não sei bem por que a
lembrança do Metro Tijuca me vem cheia de toques vermelhos, agradáveis ao tato
e com esse inseparável sabor de hortelã.
O
mais importante surgiria logo depois do jornal, colorido, irretocavelmente glamoroso,
um mundo fácil e leve, ritmado, cintilante, fantasioso, onde tudo vinha pronto
e em harmonia. E sempre, sempre dava tudo certo. A filosofia era a mesma dos
números de show. Afinação, ritmo perfeito, rostos perfeitos até na possível
feiúra. Tons e texturas, caras e bocas. Como igualar o brilho dos cabelos, o
talhe quase etéreo, o torneado das pernas, o afago das vozes – hoje eu sei –
melosas demais? Os lábios, o azul de certos olhos, os dentes? Gestos como
golpes de asas, pernas sem peso.
As
atrizes de musicais foram na certa as primeiras pernas a conseguir fama
internacional. As primeiras estrelas mundialmente famosas. Os musicais da Metro
ocuparam por muito tempo o lugar que hoje ocupa a novela das oito. Ou talvez a
novela mexicana das caras de boneca-de-porcelana, dos galãs sem jaça que não
poderiam ser outra coisa senão galãs, além, é claro, de cantarem tão bem. Ou
então apareciam Fred Astaire, Gene Kelly, aqueles caras que dançavam com a
gente.
Um
mundo assumido de fantasia e ilusão sem limites. Dourado sobre azul a
imaginação ouriçada, os olhos fartos de surpresas que iam do sublime ao kitsch com extremo prazer, como era bom.
E tudo sempre dava certo. As imitações de gente daqueles filmes sofriam,
duvidavam, mentiam, amavam e eram às vezes mais pastiches que paródias,
absurdos contos simplórios que apenas abriam espaço para as doces visões e os
números incríveis dos shows inocentes de Hollywood, dos números ainda ingênuos
até para pintar alguma forma de malícia ou erotismo.
Alienações
e críticas de pessoas tidas como doutas, quanto à intenção do que se mostrava
nos musicais: propaganda imperialista, mentira, tudo mentira, futilidade e
vanglória, alegria postiça e sem conteúdo. Leviandade, oportunidade aberta à
moral tolerante, proclamavam os religiosos de nariz torcido. Situações tênues e
irreais do roteiro, mesmo assim, ofereciam material aos reparos dos censores de
plantão, naquele tempo mais numerosos e respeitados que agora. Sempre uns
chatos, porém.
Mas
havia uma forma artificial de perfeição naqueles espetáculos que conseguia
remi-los de todas as falhas que se alegassem. Mesmo porque, ninguém que
percebesse alguma coisa poderia levar a sério neles mais que o espetáculo em
si, o show, a música, a dança e os
cenários deslumbrantes, a técnica perfeita, os figurinos e a sincronia perfeita
dos pares, os arranjos adequados ao romantismo das situações. Qualquer
carrancismo ou seriedade da trama teria feito daqueles filmes dramalhões
insuportáveis ou óperas falidas. Fazia parte da especificidade de sua forma
mimética que fossem frágeis as cenas e as circunstâncias, de uma linha de ação própria
para fazer sobressair a trilha sonora e os números de dança, e só. Apenas dava
certo, tudo tinha que dar certo, porque o segredo da eficácia da obra como um
todo era dar certo. Não era um folhetim, embora às vezes parecesse, assim de
leve. Era talvez uma forma sutil de marketing,
não agressivo como os de agora, num tempo em que a televisão apenas se tornava
conhecida de uns poucos e o cinema era a grande oportunidade de deslumbramento
das almas simples de moçoilas em flor.
Havia
uma forma superficial de perfeição, em parte graças à técnica, que dava suporte
ao vazio e ao brilho. Mas havia acima de tudo a filosofia fresca e sem dobras,
a ludicidade dos ritmos sincronizados, sapateados, estilizados; das pernas
gêmeas e sensíveis, belas ou miraculosas; dos corpos expressivos, quando ainda
não se falava em expressão corporal; das imagens clean, coloridas, certas, bem combinadas. Um conjunto de gestos
precisos, estereótipos teatrais sem culpa e até uma sensibilidade que às vezes
acertava em cheio pelo encanto da representação encenada, na música perfeita
para sustentar as sensações do momento e as saias que deviam esvoaçar
reciprocamente, complemento visual e auditivo de paz, tramando gaiatamente um
final feliz que a ninguém poderia incomodar, uma vez que o tema era sempre a
harmonia. Só insensíveis não veriam isso e não se deixariam embevecer naquelas
duas horas de impossibilidades deliciosas.
Dane-se
a impossibilidade. Tudo pode sempre dar certo. Era essencial internalizar a
mensagem tantas vezes e de tantas lindas formas repetida. Naquele tempo não
seria justo não crer no impossível.
quarta-feira, 14 de agosto de 2013
Assunto não falta
Toda vez que alguém me pergunta por que não estou escrevendo mais, tenho que responder alguma coisa. Então respondo: falta assunto. O que não é verdadeiro. A verdade é que minha vida mudou (em parte para melhor) e fiquei sem tempo livre para anotar minhas novidades.
Tenho esperanças de conseguir voltar a escrever mais que poesia, quem sabe?
Tenho esperanças de conseguir voltar a escrever mais que poesia, quem sabe?
terça-feira, 6 de agosto de 2013
O bem, o mal e a coluna do meio
Retorno hoje a esse blog.
Pura saudade de meus seguidores, de quem já foi tão amigo a ponto de nunca deixar de comentar aqui.
Não há dia certo para publicar, mas de vez em quando volto, só para testar se ainda existe alguém interessado nas crônicas e textos.
Hoje quero falar do Papa Francisco.
Esse homem realizou a graça de recuperar meu interesse pela igreja onde fui criada e aprendi tanta coisa. Trouxe de volta as lembranças de anos e anos atrás, quando eu acreditava. Trouxe também de volta minha vontade de Deus.
Agradeço a ele ter voltado a crer. Acredito que foi Deus que nos deu esse Papa. Tudo que ele disse me pareceu tão lógico, tão perfeito e verdadeiro que minha alma deu uma volta em torno de mim.
Obrigada, Francisco.
Pura saudade de meus seguidores, de quem já foi tão amigo a ponto de nunca deixar de comentar aqui.
Não há dia certo para publicar, mas de vez em quando volto, só para testar se ainda existe alguém interessado nas crônicas e textos.
Hoje quero falar do Papa Francisco.
Esse homem realizou a graça de recuperar meu interesse pela igreja onde fui criada e aprendi tanta coisa. Trouxe de volta as lembranças de anos e anos atrás, quando eu acreditava. Trouxe também de volta minha vontade de Deus.
Agradeço a ele ter voltado a crer. Acredito que foi Deus que nos deu esse Papa. Tudo que ele disse me pareceu tão lógico, tão perfeito e verdadeiro que minha alma deu uma volta em torno de mim.
Obrigada, Francisco.
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