segunda-feira, 28 de junho de 2010

Os pragmatas



            Pragmata é o nome de um tipo ou fonte gráfica. É também o nome de um disco da cantora Katy Garbi e de um ringtone para celulares, de Anna Vissi, autora de letras de música.
O termo está ligado à Grécia, de onde veio. Mas bem que podia ser usado em português, porque dá uma ideia mais imediata de pragmatismo do que o adjetivo correspondente, pragmático, de uso corrente e geral, que designa um cara ou um ato de caráter prático. Há também as formas pragmatista, quando se fala do pragmatismo fundado pelo filósofo e psicólogo William James, que trata dos resultados práticos da aplicação de conceitos; e pragmaticista, diferente da filosofia utilitária de James, que vem de pragmaticismo, criado por Charles Sanders Peirce, filósofo, matemático e físico americano.
Como não quero falar de nenhum deles – nem de tipos de letra, nem de música pop grega, nem de filosofia – mas adoro a palavra pragmata, que me parece mais, digamos, pragmática, peço licença para trazer para o português a forma grega.
Peço também licença para aplicar esse neologismo a determinadas figuras que compõem nossa sociedade na área dos negócios, da economia e da política. Não pretendo avacalhar o termo (como disse, acredito em sua força de expressão e em seu poder de comunicar). Mas não posso deixar de ligar uma coisa à outra.
Se pragmata dá mais força à ideia de praticidade, busca de resultados imediatos, serve também como qualificativo de quem tem pressa de se arrumar, sair ganhando de todas as situações, e pensa primeiro em si mesmo, mesmo que por direito encarne um representante do povo, no caso dos políticos, ou um elo social para o bem-estar geral, como deveria ser o caso de negociantes e economistas.
A gente imagina que a palavra egoísmo se refere sempre a indivíduos isolados, quando diz: Fulano é um egoísta, no sentido do cara que só pensa em si próprio e quer que o resto do mundo se exploda. Isso é verdade, mas é também extensivo a grupos e facções dessas classes citadas. Talvez até um político cassado possa ser solidário, até abnegado, quando se trata de sua família e seus amigos. Mas quando assesta suas baterias contra o dinheiro público, está sendo coletivamente egoísta, porque contagia os colegas menos fortes de caráter com sua forma de agir, e o bando dos corruptos cada vez aumenta mais.
Também os negociantes rastaqueras, que só pensam em explorar o próximo, que enganam, mentem e tiram vantagens inadmissíveis em cima das tendências do mercado em todos os níveis, são pragmatas no pior sentido do termo. E todo pragmata nesse caso é um egoísta coletivo, que influencia seus pares com atitudes que fatalmente serão prejudiciais a terceiros, em relação aos quais está se lixando de verde e amarelo.
O mesmo pode ser dito dos economistas, quando pensam em termos exclusivamente técnicos, deixando de fora as necessidades concretas de uma maioria despreparada para enfrentar mais despesas ou perdas salariais. E quando economistas pragmatas – essa classe ambígua – age movida por interesses políticos, como em geral acontece, encarna o pragmatismo mais lamentável que se possa imaginar. Porque, nessa esfera de ação, nada passa em brancas nuvens, nada é de curto prazo, e os prejuízos se repetem em cascata sobre suas vítimas.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Já dizia o Eclesiastes

A vaidade está se tornando uma espécie de inversão do óbvio. De defeito, está passando a qualidade reconhecida pelo senso comum e pacificamente aceita e aprovada. É até engraçado, às vezes, analisar o perfil do vaidoso assumido, desses que se adora e projeta sua imagem num halo de perfeição, que está convencido de que deve ser admirado, como se isso não fosse mais que uma obrigação do resto dos mortais.
Para quem tem um mínimo de senso crítico, o vaidoso é antes de tudo um ridículo. Mas a causa desse fenômeno de crescente envaidecimento da humanidade deve ter mais de uma explicação, como em geral acontece em tais casos. Obviamente a primeira causa deve estar na crença de que é a exposição o caminho mais curto para se obter sucesso e grana. Dá certo para muitos, por que não daria para ele? Como esses caras chegaram a ser considerados VIPs, como conseguiram a fama, tornaram-se celebridades e ídolos de multidões histéricas? Quem embarca no trem da vaidade nem cogita de investigar o que esses bem-sucedidos fizeram antes de chegar lá, como investiram em suas carreiras, quanto tempo de formação e trabalho tiveram para conseguir o lugar que ocupam agora.
Outra causa, talvez menor, mas igualmente eficaz, seria o incensamento da autoestima. Um duplo mal entendido, talvez, porque autoestima não consiste em se julgar melhor que o resto da espécie, e sim em estar bem consigo mesmo, viver a difícil paz interior, gostar da vida, sem alimentar mágoas nem sentimentos paranóides de inferioridade. Outra pode ser a crença, muito difundida hoje em dia – mas também muito simplória – de que aquele não se enaltece não consegue nada de bom neste mundo. Será mesmo?
O chato de dizer tudo isso é que fica parecendo uma pregação de moral, o que não é absolutamente o caso. Mas a fumaça de vaidade que se respira a todo momento parece mais densa do que nunca. Dá vontade de perguntar – o que você fez para se apresentar assim, tão arrogantemente convencido de seus dons de saber, beleza ou talento? Porque nada de muito sólido se consegue nesta vida sem um tempo significativo de dedicação, esforço e trabalho. E tais créditos nunca dispensam uma boa dose de humildade, no bom sentido de simplicidade, consciência do próprio lugar no mundo e disposição para encarar as limitações a que todos, cada qual a seu modo, mas sem exceção, estão sujeitos. Chegar a superar essas limitações exige coragem e luta, paciência e lucidez – valores que nenhum vaidoso vive de fato ou quer conhecer de perto.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Filosofia, poesia e gente



Uma dessas coincidências que chamam a atenção da gente aconteceu neste mês de junho, de quase-inverno insolitamente gélido (hoje, 11 graus no Rio!).
No dia 4, uma sexta-feira, o Segundo Caderno de O Globo publicou um artigo do antropólogo Hermano Vianna, que tem livros dedicados à cultura popular sobre o funk e o samba. Nesse artigo, no entanto, ele trata de um tema bem diferente: o texto tem por título “A nova metafísica”, e fala do livro Depois da finitude, editado em Paris, pela Seuil, em 2006, escrito por Quentin Meillassoux, que começa assim: “A teoria das qualidades primeiras e segundas parece pertencer a um passado filosófico irremediavelmente caduco: é tempo de reabilitá-la.” A partir daí, dado o sucesso que o livro tem alcançado, passa a comentar o fato de que o pensamento filosófico pós-68 já não anda tão firme como se tem propalado desde que Deleuze e Derrida publicaram suas obras. Ideias como o “correlacionismo” perdem sua força. O “correlacionismo”, numa explicação grosseira, defende que só conhecemos das coisas o que experimentamos pelos sentidos, que traduzem nossa relação com elas, mas não temos como conhecer as coisas em si mesmas. Ou seja, sentimos gostos, cheiros e vemos imagens, mas o que está “do lado de lá”, o real ou coisa “em si”, seria para sempre impossível de conhecer.
Mesmo levando em conta as teorias que a elite intelectual tem defendido desde aquele período, e admitindo a influência dessa linha de pensamento sobre o comportamento das sociedades ocidentais de modo geral, acredito que a ideia da metafísica tenha estado sempre infiltrada na visão de mundo das pessoas comuns e que sua influência nunca tenha se diluído completamente na vida dessas pessoas.
Em parte, talvez principalmente, isso acontece por causa dos conceitos religiosos, que remetem à existência de uma realidade extrassensorial. Se grande parte aceita a relativização da ideia de realidade, por outro lado existe para muitos a noção de seres a que se deve obediência, e acima de tudo a noção da criação, que dá às coisas que nos cercam um sentido sagrado. E se alguma coisa é sagrada, ela existe e é governada por leis que estão acima de nós. A enorme diferença é que nesse caso não se trata de uma convicção racional, mas de uma crença baseada na fé. E como a fé religiosa tem cores emprestadas da experiência infantil do desamparo e sua motivação é predominantemente afetiva, ligada à presença do pai e da mãe, percebe-se que, mesmo não se tratando exatamente da metafísica de cunho filosófico que vem dos gregos, elas, as duas formas de metafísica, se comunicam.
Cada qual a seu modo, ambas existem por causa da fragilidade humana, pela necessidade de alguma certeza em que se possa confiar: a dos gregos, falando figuradamente, a certeza de que se pisa num chão verdadeiro, que não vai nos engolir de uma hora para a outra numa ilusão de solidez; no caso da religião, a certeza de não estar sozinho e abandonado no mundo, mas poder contar sempre com a ajuda de um Pai ou uma Mãe celestiais, santos ou seres em que se possa acreditar incondicionalmente.
Mas lá no início do texto eu falava de uma coincidência. Pois aqui está o segundo termo dessa coincidência: descobri, alguns dias depois do artigo de Vianna, o poema de Nílson Galvão, em que ele fala desse mesmo fenômeno, dessa vez na linguagem de sua boa poesia:


O peregrino dos dias
                        Nilson Galvão
 
A eternidade está morta,
dizia o filósofo com os dentes
cerrados. Quanto a mim,
creio ter assistido a seu enterro
naquele dia fatídico. As pessoas,
inocentes, não suspeitavam de nada
e seguiam cultuando esse grande
e poroso espírito, a eternidade.
Fiquei ali perplexo, enquanto bebia
a morta. A eternidade exalava
distâncias. Meu coração escutava
miríades de estrelas e mistérios
da luz. Cantava junto com as
carpideiras, imitava seu ofício.
E ali a eternidade, em meio às
 flores amarelas e brancas
a murcharem. Meu coração escutava
o trespasse, fiquei velho da noite
para o dia, fiquei cego como têm se
tornado cegos os que insistem. Andei
pelo mundo com a lanterna inútil,
clamei por algum alento e nada:
a eternidade estava morta, era
inarredável, estávamos órfãos
em definitivo.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

De imagens e palavras*






Van Gogh. Meio-dia.
 

O modo como as imagens têm sido tratadas em nosso mundo frenético é inadequado e irreverente, porque teima em ignorar a dignidade do que se vê. Não se sabe exatamente a quantas palavras equivale uma imagem. Ela pode ser uma fonte de palavras. Mas pode também suscitar apenas um silêncio contemplativo, uma reflexão muda.
Na linguagem do sonho as palavras se cristalizam em imagens, porque o caminho que elas percorrem é o da contramão da estimulação: em vez de afetar o neurônio e então ser percebida como imagem, a palavra vem do neurônio investido de volta à percepção. O sonho consiste de imagens e às vezes de palavras que são como recortes de uma colagem, fora do contexto regulamentar em que funcionam na linguagem. É frequente que um sonho apresente uma palavra – às vezes até uma frase – hermética, misteriosa, que figura ali como uma representação daquilo que a palavra pode querer dizer, ao invés de um termo no contexto usual da linguagem. A imagem verbal tem muito mais um caráter conotativo que denotativo no ambiente onírico. E o que ela significa pertence à esfera subjetiva de quem sonha. Mistura-se às imagens com um valor equivalente, é parte do enigma do sonho.
Se refletirmos nesse fenômeno, fica mais fácil perceber por que uma imagem nunca é a mesma para todos que a veem. Se isso é verdade, então como tratar as imagens como objetos fabricados em série? Palavra e imagem têm uma longa história de encontros e desencontros. Ambas estão ligadas à percepção visual e à memória. Ambas vêm impregnadas de sentidos e mensagens de variação infinita – que o diga Andy Warhol.
A criação literária é o momento privilegiado da palavra, quando se convocam imagens e estados subjetivos em função de uma criação única e intransferível, em tudo semelhante ao processo onírico. Não significa que o autor tenha a intenção de contar fatos autobiográficos, mas sim que a obra de criação é, como no sonho, autobiográfica, ainda que não seja confessional. O que se manifesta na obra de criação tem suas raízes firmemente cravadas na subjetividade. Há uma forma de sonho na obra de criação.
Palavra e imagem se fundem num texto que irá afetar de modos diferentes seus leitores. As pesquisas sobre o tema demonstram que a recepção individual do texto literário se dá em uma zona de condensação organizada pelo inconsciente e sua subjetividade. Os elementos que contam para o indivíduo que lê vão além dos conceitos vigentes da cultura e dos preceitos de sua sociedade – embora esses fatores sejam de grande importância e quase sempre determinem o sucesso ou o fracasso de uma obra em termos objetivos. Uma pesquisa puramente conceitual, no entanto, não dá conta do literário, assim como somente uma pesquisa psicanalítica não o conseguiria.
A explicação disso se deve em parte à disjunção palavra-coisa. É como comer o fruto proibido: a palavra ingênua quer designar a coisa, e uma vez perdida a inocência e percebida a precariedade da identificação entre elas, descobre-se que a coisa não está onde a palavra a designara, que já não há redução possível de uma à outra. Descobrimos que fomos vitimados por uma série de separações, quando acontecimentos como perdas, mortes ou omissões se reduziam a palavras que deixavam escapar seu verdadeiro sentido. O passado não cabe nas palavras com que o evocamos porque não foi e não será como o recordamos ou falamos dele. Também não podem prometer nada para o futuro, porque será sempre fantasia tudo que disserem a esse respeito. As expressões se gastam ao ponto do lugar-comum: terra natal, terra prometida, o céu na terra e seus análogos só nos dão a certeza de que “uma coisa sem nome nos acompanha” que não é “nem nossa origem nem nosso futuro” e que por isso é “nosso horizonte permanente” e também a garantia única de alguma “tensão da palavra no momento”**.
Por sua vez, a imagem pode exibir acontecimentos em outra dimensão, mas a ilusão de seu poder também é um risco. Não vale mais nem menos que a palavra: é diferente. Os limites, os vazios, as imprecisões e a multiplicidade das palavras e da linguagem têm uma espécie de contrapartida na imagem. As palavras reduzem e atenuam o real que a imagem resgata. Mas é bom estar atento a um engano também nesse domínio. A imagem reproduzida e divulgada ao ponto que a vemos na propaganda e na mídia se destina a criar novas ilusões, porque a experiência que ela oferece não é a experiência do real. Enquanto representação do real, a imagem merece respeito. Rebaixada a vendedora de ilusões e propagadora da mentira, é uma fraude lamentável, que faz da ilusão uma razão de viver.
Como em tudo nesta vida, o real tem que ser a medida de todas as coisas.
*Texto reeditado.
 
** Pontalis, J.-B. Perdre de vue. (1988) Paris: Gallimard.