Desconfio da segurança com que muita
gente se escora nas garantias da razão. Um recurso importante, a razão;
acredito que deva ser exercitada por motivos análogos aos que, em outro nível,
nos levam a frequentar uma academia e fazer caminhadas. Mas desde a Antiguidade
ela tem sido posta em cheque ou francamente desmentida (embora nunca
desprezada). E quando Descartes se pôs a fazer malabarismos mentais, tentando provar
o que o establishment de sua época
considerava a verdade, tudo que
conseguiu foi dar argumentos à crítica dos séculos seguintes.
Mas assim como malhar não é tudo, e o
corpo precisa de muitos outros cuidados para se manter funcionando e saudável,
os argumentos, ilações e conclusões a que chegamos através do pensamento não
dão conta sequer da realidade como a conhecemos via sentidos e observação. O
que nossos instrumentos físicos e mentais conhecem da realidade não passa de
uma fração. A extensão desse pedaço é discutida, e não há como duvidar que, ao
longo da história humana, houve e continua havendo avanços nessa matéria. A
ciência tem derrubado crenças milenares, e à medida que as pesquisas e a
tecnologia progridem, tudo vai se transformando no caleidoscópio do
conhecimento.
Mas se o conhecimento se expande e
muda de cara a cada século – ultimamente até a cada mês – certas questões
continuam incomodando e impulsionando pesquisadores e filósofos. Em matéria de
saber, aquilo que incomoda porque não se consegue ver claro, por mais que se
persiga, é o que estimula a busca além das fronteiras conquistadas.
Aliás, conquistadas é um termo
inexato nesse caso. Muito do que já se considerou dominado, acabou por se
mostrar falso ou duvidoso, dando motivo a novas pesquisas e descobertas. Teve
razão Bachelard, quando disse que toda hipótese científica tem origem na
fantasia ou na imaginação. Isso não significa que a ciência não passe de uma
ilusão – embora sob certa perspectiva ela possa ser considerada assim. Só os
resultados demonstram o valor e a importância de suas conquistas.
Quanto à razão, não é de admirar que
inteligências brilhantes se submetam a uma construção mental e saiam por aí
afirmando verdades quem ninguém
poderia provar? Não é embaraçoso que gente de talento assuma uma postura cínica
ou arrogante em nome de uma teoria? Às vezes me parece que a atitude
escrupulosamente cética de certos pensadores funciona como uma antítese à
atitude pesadamente crédula do passado, e tem tudo a ver com credulidade. Mas
Hegel já saiu de moda, a dialética é uma lei em desuso.
Então lembro aquela constatação
rasteira, que diz que os extremos se tocam. Para negar o autoritarismo, algumas
pessoas se tornam autoritárias. Querendo se mostrar liberais, impõem seus
princípios a quem não acredita neles (em política, isso é um must). Defensores intransigentes do conceito
de imanência, fecham-se como teístas fanáticos a qualquer fato ou sentimento
que possa arranhá-lo. Tudo isso denota um uso abusivo da razão e seus recursos.
Quando se arvora em juiz e legislador,
a razão pode se tornar parceira inseparável da vaidade e do egocentrismo. Reinando
sozinha, é incapaz de empatia e não deixa espaço livre para as manobras
afetivas, necessidade vital de qualquer pessoa digna desse nome. É preciso
desconfiar da razão. Merece respeito e atenção, é boa de diálogo; mas não se pode
entregar a ela a chave da casa.