terça-feira, 23 de junho de 2009

Perspectiva às vezes engana


Paul Bracey. Mind prison.


A boneca está meio desconjuntada, braços de pano pendentes, cara de nada absoluto. Que bobagem, isso é uma contradição em termos. Como pode ser o nada absoluto, se é uma boneca, mesmo assim, quase se desfazendo? Verdade que existe o tempo – parte dela já virou pó, já não é a boneca que foi a princípio. E se não é mais aquela do início, começou a navegar no nada. Fico solidária mas um pouco assustada. O nada absoluto está em meu rosto também.





A formiga carrega seu pedaço de folha pelo caminho de pedra. Está no jardinzinho bem tratado, cheio de cores, que fica bem no centro do planeta e bem debaixo do pedaço da Via Láctea que protege nossos telhados.




Para mim ele está lá, mas o lá onde ele está é o aqui dele. Então podemos concluir que todos nós estamos em pelo menos dois lugares ao mesmo tempo. E ainda dizem que só santo Antônio tinha o dom da ubiquidade.




Daqui do escritório, tenho a sensação nítida de que lá dentro, na sala e nos quartos, talvez na cozinha, estão meus pais, meu irmão que morreu novinho, meus tios e avós. Experimento a sensação bem viva dos primeiros anos, quando morava com eles. Às vezes havia alguém mais. Não posso afirmar nada, já que estou aqui no escritório e não dá pra ver o resto da casa.




Perspectiva e seu grande amor, Sofisma, moram em bairros separados, Razão e Imaginação. Têm uma bela prole que aumenta toda vez que um deles vai visitar o outro. Uma de suas filhas, chamada Mentira, ficou muito famosa e tem numerosos imitadores. Mas a filha que mais influencia as pessoas é Ilusão, uma linda moça de enormes olhos verdes, que anda sempre viajando no Mundo da Lua.

sábado, 13 de junho de 2009

Ego malhado


Foto Boris Kossoy. D. Pedro.



A gente não é para si mesmo o que parece para os outros. A imagem que se imagina estar exibindo é quase sempre mais bonita, marcante, às vezes sedutora, porque era isso que se desejaria. Daí a ambição de tanta gente pelo "sucesso instantâneo", a fama, mesmo que seja à custa da própria dignidade e sossego. Mas quase sempre nossa disposição interior e nossa auto-imagem nos enganam.
Mesmo o espelho é menos confiável do que parece, porque o que vemos refletido muitas vezes se beneficia de nosso olhar indulgente e idealizador, de nosso desejo de agradar, de nossa incrível fragilidade diante da ilusão.
E se é assim para a imagem visível, exterior, imagina o conceito que fazemos de nossa inteligência, talento, personalidade e caráter! Expressão disso é a velha frase "sabe com quem está falando?"
Com quem será que o outro está falando? Com o cidadão mediano e banal a sua frente, ou com o excelso cavalheiro que o próprio se imagina? A famosa frase é sempre lembrada nos momentos em que o ego está arranhado, e se há coisa que ego não agüenta é que se ponha em dúvida sua excelência, seu poder e importância.
Meu ego não é melhor que o de ninguém. Nas horas mais críticas, quer se fazer valer na base do confronto. Faz parte.
Mas essa porção perigosamente arrogante que a gente carrega precisa de rédeas e freio. Ego é como cavalo (puro-sangue, vá lá) – precisa ser bem tratado para ficar manso e em paz e dar conta de seu recado, isto é, defender o melhor possível a imagem de seu amo.
Além de tudo, preciso dele. Todo mundo precisa de um ego saudável pra não se sentir descendo pelo ralo. Em condições normais, o ego é um grande sujeito, sempre pronto a te animar, incentivar, alimentar a auto-estima. Tendo em vista seu gênio irascível, porém, fiz um pacto com ele: cada vez que conseguir se segurar sem pagar mico nos momentos difíceis, dou-lhe um presente. Ego é como criança: gosta de bombom, biscoito, sorvete de chocolate (nesse particular, ele já sabe que a recompensa é racionada, muito mais qualidade do que quantidade). Gosta de ambientes acolhedores, almofadas macias, gente carinhosa. Gosta de um bom filme, boa música, sair pra jantar fora. Adora surpresas.
O trato quase sempre funciona. Com grande vantagem para mim, uma vez que o ego e eu somos indissociáveis e temos o mesmo gosto. Minha vida ficou bem mais divertida. E esse resultado foi só o mais visível. Por tabela, melhorei a qualidade das amizades, consegui superar situações estressantes sem me machucar e – eureca! – fortaleci meu ego sem deixá-lo mimado. Aprendemos juntos que viver bem é muito melhor que correr atrás de qualquer vantagem ou sucesso. E quando ele começa a querer viajar na maionese, puxo-o pelo suspensório ridículo que não abandona nunca. Aí ele volta uns passos atrás e me olha com ar contrito. "Já sei" – diz com uma voz que só eu posso ouvir. "Extrapolei. Peço desculpas. Pronto, já estou de novo no tamanho que você gosta. Mas por favor, não me faz perder a sessão das oito. Eu juro que não faço mais."

quinta-feira, 4 de junho de 2009

A liberdade doente

Os convites para sites de relacionamento e chat, que chegam todo dia no e-mail da gente, em geral vêm em nome de alguém de nossa lista que pode não ser o autor da mensagem. Não são somente os vírus e spams declarados que chegam assim. Vêm em tom invasivo e falsamente descontraído, mas não passam de marketing descarado, já tão incorporado a nosso dia-a-dia que às vezes nem nos damos conta. Por que estranhos a léguas de distância estariam preocupados em nos trazer de volta amigos extraviados ou antigos colegas de escola e de trabalho? Quase sempre o mesmo pretexto para oferecer produtos supérfluos, serviços que ninguém pediu e outras mercadorias perfunctórias, esse tipo de mídia eletrônica onde piscam mil e um patrocínios de construtoras, lojas, hotéis, carros, utilidades, inutilidades, garotos(as) ou amigos de programa, que em certos casos pagam para se ofertar via internet.

Cada vez mais forças externas tentam dirigir os atos que deveriam ser de iniciativa exclusiva de cada um. Isso lembra muito 1984, de George Orwell, ou Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Outro dia, revendo Zorba, o Grego (que filme!), e vendo os camponeses de Creta esperando a morte de Hortense para saquear sua casa, pensava na analogia entre aquela cena e a constante intrusão de empresas e pessoas que insistem em nos convencer de que o melhor para nós é o que eles querem – e eles sempre querem nos passar alguma coisa em troca de nosso dinheiro e/ou nossa submissão para fomentar seu poder.

Por conta dessa luta de interesses, que se disfarça de luta de ideias, este mundo às vezes parece um grande manicômio. O inconsciente coletivo virou um amontoado de noções sem fundamento e preconceitos distorcidos explorados por aventureiros. Diante destes, os sofistas da antiga Grécia eram seres sem malícia. Nos anos 1960 passamos por um período em que as ideologias se digladiavam e geravam debates e contendas sem fim. Agora porém as ideias e visões de mundo chegam aos pedaços, mal assimiladas e achacadas pelo mercado, pelos políticos e por aquele tipo de gente que corre atrás da fama a qualquer preço.

O lado virtuoso da comunicação em tempo real, que chega da televisão e da internet, traz em seu bojo dois vícios capazes de anular grande parte das vantagens de tanta rapidez: a informação chega muitas vezes mal elaborada e quem a recebe na outra ponta quase sempre deturpa seu sentido, por estar mal preparado ou desinformado de dados anteriores, sem os quais a notícia perde seu sentido principal. Diante disso, a mentalidade do público em geral flutua entre juízos precipitados e dúvidas sem resposta; e grande parte das pessoas desiste de entender e se acomoda na alienação, ou então assume uma atitude irracional diante dos acontecimentos.

Talvez tenha chegado a hora de reunir de novo na praça os pensadores, os artistas e o povo, como faziam os antigos gregos na ágora. Quem sabe ainda se consegue plantar em nossas cabeças a semente de uma reflexão sem compromisso com os interesses do dinheiro, do poder e da violência? A liberdade humana é um conceito pouco claro, porque, em qualquer caso, é sempre muito limitada. Mas sem essa reflexão, a liberdade de cada um de nós se reduz a miragem, palavra vazia do vocabulário politicamente correto, e só.

Foto Bey Harrison.