quinta-feira, 28 de maio de 2009

A vida não é cruel, crueis são os seres vivos


Em tempos de mea culpa, os inocentes sofrem por tabela. Bom, não sei se inocente será a palavra certa neste caso, porque de inocentes nós, adultos, não temos nada. Nem nunca tivemos, que Adão e Eva não me deixem mentir. Por outro lado, a Bíblia e a literatura, oriental e ocidental, estão recheadas de narrativas sobre traições, inveja, calúnias e personagens desconstruídos pela malícia de inimigos ou supostos amigos.

Há casos tão pungentes, porém, que parecem respingar em nós, mesmo separados por décadas dos envolvidos. Como todo mundo já sacou, estou falando de Wilson Simonal, que agora ocupa as primeiras páginas da mídia impressa e os noticiários de televisão, além dos sites mais badalados da internet. O que aconteceu com ele foi um exemplo assustador e paradigmático das voltas que a vida pode dar. Os motivos, assim à primeira vista, parecem envolver, de um lado, fanfarronice, muita vaidade e deslumbramento, e de outro, muita inveja, ódio e oportunismo político.

Nada poderia ser mais esclarecedor sobre o caso Simonal que o documentário dirigido com talento e isenção pelo "Casseta" Claudio Manoel, junto com Calvito Leal e Micael Langer. Um bom trabalho jornalístico, bem documentado, com uma visão tão equilibrada quanto possível do caso e uma dose de compaixão pelo sofrimento humano que encerra – além da intenção, justa e bem-sucedida, de reafirmar o valor artístico de nosso primeiro grande astro pop para as gerações que nem ouviram falar dele.

O filme está no Twitter e praticamente em todos os sites de jornalismo e informação da rede. Há uma boa entrevista de Claudio Manuel, um dos diretores do filme, no Esquina da Música, que traz também uma ótima coluna de Luiz Felipe Carneiro sobre a produção.

Em Cinema Nacional, encontra-se um texto bem esclarecedor sobre algumas pessoas envolvidas e detalhes da história.

Assistir à tragédia de Simonal – filho de uma doméstica, sem escola nem preparo, que muito depressa e por seu próprio talento se tornou o primeiro negro a alcançar um sucesso absoluto de público e crítica nunca visto no Brasil dos anos 1960 – é perceber cruamente até que ponto o deslumbramento diante da fama pode desconstruir um sucesso que se julgava indestrutível.

A história de Simonal é incômoda e doi, porque de algum modo faz seus contemporâneos se sentirem um pouco cúmplices de sua desgraça. Ou, num plano mais obscuro, leva as pessoas a perceberem o estranhamento da ameaça do que pode atingir qualquer um de nós, vindo de onde menos se espera. Até aqueles que antes o bajulavam ouviram e leram as acusações contra ele passivamente. E ainda que não tivessem meios de conhecer o outro lado das notícias (já que os tempos eram sombrios e a censura comia solta), nem pestanejaram em aceitá-las ou simplesmente passaram batidos pelo lugar do fogo cruzado e trataram de esquecer o ídolo, ajudando a enterrá-lo na depressão que acabou por jogá-lo no alcoolismo e na morte prematura.

A surra encomendada contra o contador do artista, Raphael Viviani, que supostamente andava metendo a mão em seu dinheiro, e a tortura que ele sofreu no recinto do temível DOPS, agravadas pelo narcisismo ingênuo do cantor, se encarregaram do resto, quando ele se gabou de ser “amigo dos homens”, num tempo em que a ditadura militar já perdera o apoio de muitos simpatizantes e só o medo a mantinha de pé.* O engajamento de Simonal era antes de tudo com a música, seu trabalho e seu talento, além da dedicação a um movimento negro ainda disperso e não institucional, que seus inimigos deixaram esquecida.

*Régis Tadeu, do Yahoo Notícias, escreveu uma boa coluna sobre a história de Simonal, e chama a atenção para detalhes que vale a pena lembrar.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Pequenos nadas

...
se vieres à minha procura
vem devagar e suavemente para não quebrar a porcelana da minha solidão.
Sohrab Sepehry. Irã, 1928-80.


Outros além do poeta iraniano já disseram, em palavras diferentes, que abordar uma pessoa não é para qualquer um. A começar pelo modo como se acorda quem está adormecido, evitando uma transição muito brusca do sono para a vigília, que faz disparar o coração de susto e começar mal o dia. A não ser no caso de dorminhocos notórios e contumazes, basta um leve toque, uma chamada em voz baixa, e quem estava dormindo acorda sem traumas.
Chamar alguém aos gritos é, mais que uma questão de educação, uma agressão sem motivo. Excetuando-se as situações-limite, como estar preso por dentro, ameaçado de cair da janela ou com a casa em chamas, ninguém precisa pôr a boca no mundo para chamar a atenção dos outros.
Em circunstâncias normais, as pessoas gostam de ser lembradas e procuradas, mas nunca perturbadas por um chato inconveniente. Igualmente incômodo é ser lembrado sempre com intenções utilitárias, como empréstimos de coisas ou dinheiro (argh!), pequenos serviços que não nos competem ou pedidos que às vezes se tornam um transtorno para quem precisa obedecer a horários apertados ou desviar-se de seu rumo para atender ao pidão.
Pouca gente hoje em dia ainda se sente obrigada a aceitar encargos que não lhe digam respeito. Deixou de ser embaraçoso dizer “não”, ao menos para quem vive nas cidades e tem o tempo contado para suas próprias obrigações, mais escasso ainda para seu lazer e o cuidado de si. Mas ainda existe gente, tímida ou inadaptada aos hábitos urbanos, que não tem coragem de se negar a fazer o que lhe pedem. Às vezes viram verdadeiros servidores do outro. E sofrem por isso de um modo insuspeitado.
A abordagem amorosa é um caso aparte, mas nem por isso pode invadir a privacidade do ser amado, como se amar desse carta-branca para ignorar a necessidade que todo mundo tem de um tempo só para si. Nesse caso, mais que em qualquer outro, o respeito à solidão do parceiro pode fazer crescer o amor, um sentimento cada vez mais raro e valioso, que todos desejam mas nem todos experimentam e praticam de verdade.
Quanto mais íntimo se fica de alguém, mais é preciso estar atento ao tempo de que esse alguém necessita para respirar, cultivar sua paz interior ou refletir e tomar decisões sobre seus problemas. Quando o ser amado não preza nem mesmo seus próprios momentos de solidão e parece ter horror a ficar sozinho, ao menos um pouco todos os dias, pode ser que a porcelana de que fala o poeta esteja quebrada. E porcelana não dá pra colar.

Foto Vasilis Artikos. Birds.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Correr atrás

É bom suspeitar das certezas que nos impedem de seguir caminhos, quebrar hábitos e nos afastam das pessoas. Depois de se cristalizarem em hábitos de rotina, já não são certezas, são restos – melhor reavaliar e, se for o caso, jogar fora.
Não analisamos as convicções pré-fabricadas. Agimos como se determinados princípios, conceitos ou simplesmente hábitos fossem cláusulas pétreas. Acontece que nada tem validade eterna. O tempo muda, o mundo tem uma cara nova a cada ano, cada semana, cada dia. E às vezes a resposta a algumas questões que nos atam ao padrão de comportamento que acreditávamos ser o melhor está bem diante de nossos olhos, mas não a percebemos porque nossa censura interior não deixa ou simplesmente porque já mergulhamos numa letargia chamada rotina que nos pacifica sem intervenção de nossa vontade. Ora, é bom desconfiar de princípios que criam limites intransponíveis. É bom ficar atento, porque se a inércia tomar conta de nós é sinal de que estamos desperdiçando coisa ainda mais valiosa do que a água – nossa própria vida, bem finito e sem reposição.
Ninguém é obrigado a fazer o que não deseja. É justamente o oposto: não ser maria-vai-com-as-outras, e sim ver claro até onde nosso próprio desejo pode chegar e até que ponto estamos perdendo a oportunidade de viver melhor. Confundimos personalidade com resistência, força de caráter com teimosia, bons hábitos com mesmice, e o resultado é que vivemos numa espécie de marasmo espiritual que nos impede qualquer ação fora dos padrões vigentes de nosso comportamento.
E no entanto toda pessoa é capaz de criar alguma coisa com sua marca. Cada um pode viver mais plenamente se apenas entregar ao mundo uma contribuição sua, pessoal, que ninguém mais poderia dar. Pode ser uma comida mais saborosa, um trabalho artístico ou artesanal, uma atividade social ou profissional levada com o empenho de quem quer fazer o melhor. Importa sim fazer o melhor que se pode. Não para competir ou ganhar medalhas, que às vezes nunca chegam para quem mais as merece, mas para satisfazer à necessidade que é um dos diferenciais da pessoa humana: criar alguma coisa sua, que seja capaz de abrir um espaço de dedicação e interesse maior em sua vida.
O pensamento criativo não tem razão externa aparente nem segue programas ou canais preestabelecidos: é natural como nascer, como fazer amor. Pensamento criativo é pura paixão. Mas é preciso deixar que ele flua, dar asas à paixão; ouvir sua voz dentro de si e agir para que dê frutos. Ver a própria produção como coisa concreta e real é um prazer que incentiva a doce ousadia de apresentá-la aos olhos alheios – e talvez vê-la devidamente bem-recebida. Vale a pena.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Blogs, agregadores e o colarinho do chope



Blogs são páginas (ainda) pessoais em que alguém diz o que quer pra quem quiser ler.

Dito isso, fica decretado que todo mundo com acesso à internet pode ter um. Isso teve acima de tudo o efeito de divulgar o trabalho de pessoas que, de outro modo, levariam décadas, talvez toda uma vida, pra se tornarem medianamente conhecidas de públicos específicos, interessados em atualidades, literatura, artes visuais etc. ou do público em geral.

A ideia do “diário virtual”, de que se falava como uma definição do que seria um blog, rapidamente foi ganhando outras nuances, porque nem tudo na blogosfera é diário de adolescentes ou gente sem muito o que fazer na vida – embora isso ainda exista em grande número. Muitos dos usuários desses sites queriam e querem mesmo é botar o blog na rua, mostrar o que sabem fazer, tentar publicar livros, entrar em contato com grupos de seu interesse ou vender produtos. De qualquer modo, os blogs ainda servem como testemunhos dos costumes, crenças e tendências dominantes de uma época. E muitos deles têm objetivos bem úteis, em nosso país pouco dotado no setor de educação e cultura.

Depois do advento dos orkuts da vida, tanto os interesses comerciais como os sociais ganharam outra força e outras ferramentas, mas os blogs subsistem. Acredito que ainda tenham uma vida longa, embora com perfis cada vez mais específicos.



Mas agora chegaram os chamados agregadores. Servem para divulgar gente, notícias, links para divulgação, negociantes de olho vivo nas mídias que podem ajudá-los a vender e uma poeira de estrelas sem muito que fazer além de ficar na onda e ser vista de alguma forma. Parece que não ser visto é o pior opróbrio de nosso tempo, um vexame que ninguém quer sofrer. Não vamos discutir isso, embora me deixe meio grilada, porque não consigo entender por que substituir bem-estar por visibilidade (e notem que nem falo de felicidade, um conceito mais fluido e subjetivo).

Twitter e afins são úteis pra muita gente. Só é preciso saber procurar – como acontece com quase tudo na vida – onde está o que efetivamente interessa, e não o que vai servir de mero fermento para o bolo dos seguidores. Por enquanto, estamos na fase da espuma, o chope sendo tirado do barril, uma certa euforia que respinga em todo mundo e leva a experimentar o novo instrumento de comunicação, mesmo que a rigor não se precise dele para um fim determinado.

Os blogs ficam meio na penumbra. O mecanismo de seguidores, que ora domina os aficcionados, torna menos importante comentar, saber do que um texto realmente trata, e torna a leitura menos importante. Isso é chato, acho que é o lado menos cheiroso dos agregadores, dos quais o comando "seguir" é o braço mais forte. Esperemos baixar o colarinho de nosso chope pra ver como fica.