domingo, 24 de agosto de 2008

Paz


É mais do que sossego. Sossego é pouco mais que uma lagoa de águas paradas, e se for demais pode ser foco de doenças da alma, assim como a lagoa pode criar mosquitos que causem doenças do corpo.
Mais do que bem-estar, boa saúde, disposição, conforto físico. Mais do que segurança, que qualquer pitbull bem amestrado pode dar.
Nem mesmo tudo isso reunido é sinônimo de paz, que não depende de fatores externos.
Paz é ter uma lagoa cristalina dentro de si. Paz é ter um sol de primavera nas entranhas.
Estar feliz e bem consigo mesmo, ainda que a saúde não esteja lá essas coisas. Estar ancorado numa tranqüilidade meio misteriosa no mar encapelado da vida, que independe dos riscos reais, ainda que se esteja bem consciente da dimensão desses riscos. Paz é ainda saber bastar-se sozinho e ser boa companhia de si próprio, embora gostando da companhia dos outros.
Pode-se abrir mão do bem-estar e do sossego de boa vontade, durante o tempo necessário para ajudar alguém que precise de nós, e nem por isso perder a paz. Pode-se ter um horário de trabalho chato de cumprir. Pode-se trabalhar muito e no meio do corre-corre viver momentos da mais profunda paz. Pode-se ter problemas de família, conviver com gente difícil, experimentar instantes de certa raiva e nem por isso perder a paz.
Só em paz o cuidado de si e os bons momentos do amor e da amizade podem ser bem aproveitados e deixar suas marcas de alegria, a melhor de todas as terapias.
Paz é experimentar a intimidade e a solidão física com prazer, deixando aflorar boas lembranças, refletindo com calma ou simplesmente fazendo alguma coisa: estar só consigo pode ser uma aventura criativa sem paralelo nesse caso.
Se isso é auto-ajuda? Não sei, pode ser. Nem sempre a gente faz literatura. Mas também a literatura, como tudo que vale a pena, precisa dessa paz para acontecer.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

O império se estende


Os maiores elevadores do mundo, os mais potentes, estão em Taiwan. Fiquei sabendo por um documentário do National Geographic Channel. Alguns têm dois andares. Velozes como nenhum outro, são até pressurizados, para não dilacerar os ouvidos dos que, subindo e descendo dentro deles, ainda sofrem da condição humana. Têm cabos tão poderosos que dentro deles não há trepidação (o engenheiro-chefe que os inventou precisa às vezes fazer sua viagem vertical do lado de fora da cabine, e é como se uma mosca viajasse a bordo de um trator: a uma pequena falha da engrenagem, a criatura-elevador seria capaz de destroçar seu criador). Mas todos estão serena e arrogantemente seguros de que essa falha é impossível. Um sistema oculto de suportes absorve qualquer impacto a cada andar, e ninguém jamais ficará preso naqueles elevadores.

Os tais elevadores ficam no edifício Taipei 101 Financial Building, o segundo mais alto – 508 metros – e talvez o mais poderoso e indestrutível, resistente a terremotos. Foi construído numa área de risco, com o propósito de violar todas as regras relativas ao risco, que é sempre agravado pela altura da construção. Abriga bancos, financeiras, inúmeros escritórios e lojas, muitas: 101 acima do solo e cinco abaixo. Parece que tanta segurança diverte os funcionários e construtores do prédio. O Taipei suporta todas as fúrias da natureza. Foi construído durante um grande abalo sísmico, e nada sofreu: tem vigas e megacolunas do tamanho de uma sala, e o espaço perdido com essas vigas é compensado pela superposição de inumeráveis andares (eram 141 em 2007, com capacidade para crescer ainda mais), estrutura sustentada por alicerces envoltos numa camada reforçada de concreto com três metros de espessura.

O prédio foi projetado como um desafio às piores situações e catástrofes, e ali tudo é tão brutal quanto os ventos do tufão, o tremor das entranhas do planeta e – quem sabe? – até as armas nucleares. Lá dentro, ao menos 10 mil pessoas passam a maior parte de seus dias (certamente mais breves que os do prédio). São 700 mil toneladas de cimento e aço. Tamanha grandiosidade não se destina a abrigar pessoas dispensáveis, mortais sem nada de especial. Não são czares nem soberanos nem provavelmente seres dotados de algum talento capaz de salvar a humanidade. O império de agora tem outros representantes e outros objetivos.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Papel de presente


Uma linda folha de papel de presente dá vontade de presentear alguém. Parece um pouco com o que se convencionou chamar de vocação: a tendência que motiva uma pessoa a fazer o necessário para realizar seu desejo.

Houve tempo em que a palavra era entendida de modo mais radical; dizer que alguém tinha vocação pra isso ou aquilo devia ser entendido como um chamado irresistível vindo não se sabe bem de onde. Até do céu, no caso da vocação religiosa. Hoje é ponto pacífico que qualquer vocação dispensa apelos transcendentais: a coisa vem de dentro do intrincado individual das características genéticas e adquiridas.

Um chamado divino dificilmente explicaria a quantidade cada vez maior de padres, pastores e freiras que um dia se cansam da vida dedicada exclusivamente ao Senhor e à igreja de que fazem parte. A vocação deles foi um engano? E – muito pior que isso – quando padres, pastores ou freiras se deixam levar pela tentação mais hedionda e, em vez de apascentar suas ovelhinhas como se esperava que fizessem, as usam como pasto? Por que esses religiosos deixam de agir como líderes espirituais para trair a confiança de seus seguidores? Humano, demasiadamente humano.

Vocação para o magistério é outra expressão que soa meio grandiosa, diante das dificuldades da carreira – salários baixíssimos, condições precárias de trabalho, clientelas difíceis de lidar. Os próprios alunos criam obstáculos ao trabalho do professor, tanto nas escolas públicas quanto nas particulares: uns ameaçam pelo potencial agressivo dos podres poderes a que estão às vezes muito ligados; para outros, nas escolas “da Zelite”, o aluno sempre tem razão, porque sem ele não haveria recursos para manter a escola, pagar salários e obter algum (ou muito) lucro. E o professor vê seus lindos conceitos relegados a segundo ou quarto plano por conta de interesses, digamos, bem mais concretos.

Nas carreiras liberais ou artísticas, pode haver grandes compensações, talentos reconhecidos em áreas diversas, políticos realmente íntegros e dedicados ao bem comum (existem sim, pessoas de pouca fé; são raros, mas existem). Nem por isso deixa de haver sofrimento e luta constante pelo que se quer realizar – chegando ao ponto às vezes de a obra chegar a destruir alguém de estrutura frágil, como aconteceu com Maiakovski. Mas as frustrações são mais freqüentes. Depois de todos os esforços e investimentos, se a carreira não deslancha, é preciso desistir do caminho escolhido e suportar o tédio de um trabalho que nada tem a ver com o desejo de quem sonhou muito alto ou, como é comum, ficar patinando na sombra sem o reconhecimento que se imaginava conseguir. Numa sociedade que sonha continuamente com a fama e o sucesso, pode ser deprimente.

Um dos exemplos mais gritantes de fracasso que se conhece foi Vincent Van Gogh, que viveu à custa do irmão generoso sem conseguir vender um quadro, enquanto realizava uma das obras mais grandiosas de que se tem notícia nas artes plásticas. Tomara que exista vida depois da morte, para que ele veja o tamanho de seu triunfo. Não poucos nomes famosos tiveram destino semelhante ou sofreram limitações, que não os impediam de trabalhar: Beethoven ficou surdo, Kafka, sempre enredado em seus labirintos de desespero e depressão, nosso Aleijadinho, trabalhando mesmo com o corpo deteriorado pela hanseníase que o devorou em vida. Gente que tentou e conseguiu ir além do que se pode esperar de um ser humano, como Nietszche, Galileu e tantos mártires de origens e naturezas diversas, provam o quanto é temerário ignorar os poderosos e ousar ir além da mentalidade de seu tempo.

Vocação não é tudo: é só o papel bonito, que dá vontade de embrulhar um presente. Mas nem sempre se encontra ou se pode comprar um presente à altura do papel. Mais importante é persistência, tolerância diante dos fracassos eventuais, saúde e realismo para contornar as dificuldades e a incompreensão. Mesmo sem grandes glórias, resta o papel bonito para contemplar, renovar o sonho e proteger a auto-estima.