segunda-feira, 26 de maio de 2008

Jogo de todos os erros


Imagem Albert Duhrer. Melancholia. 1510.

Taí o mundo. Um jogo armado como na mídia: vilões, mocinhos, princesas, bandidos, vítimas e algozes ficam nítidos e fáceis de entender. Peças de game, todas com papéis definidos e objetivos claros. E as notícias mais pungentes das manchetes ganham um tom palatável, se as lermos numa boa poltrona.
Taí o mundo. Um cipoal de caras, pernas e braços. O mocinho roubou o laptop do pai da mocinha, o vizinho boa pinta era chefe da quadrilha que assaltou o condomínio do outro quarteirão e a linda madrasta da menina não ficou com cara de bruxa por causa do ódio que derretia seu coração. O noticiário não conta onde começaram os acontecimentos. Ou porque isso afugentaria muita gente que hoje se baseia nas notícias para julgar os personagens envolvidos; ou porque buscar as causas é papel do jornalismo investigativo, e só os casos de muita repercussão merecem ser investigados e vendem jornais e revistas.
À mídia compete informar e manter o ibope em boas médias de audiência. Por isso o telejornal tem que dar as notícias dosando assuntos escabrosos com sorridentes referências a eventos de moda; noticiar as seis mortes causadas por um bêbado ao volante, e logo substituir o ar sombrio que convém ao momento pelo placar que consagrou o Flamengo campeão; falar de mais um escândalo protagonizado por representantes do povo e logo amenizar a má impressão com a vida de glamour e o charme das celebridades mais recentes.
À mídia compete morder e soprar para manter os índices de audiência; embalar os espectadores com um recado subliminar que lhes garanta momentos de refresco, sem chamar a atenção para o que há por trás das notícias: um emaranhado de dramas, carências, ambições hipertrofiadas e instintos liberados pela falta de limites e de uma educação adequada, que formaria cidadãos minimamente comprometidos com o bem comum.
Os acontecimentos, bons ou maus, são a parte visível de uma ou várias cascatas de outros acontecimentos que se ligam ao infinito. Será tão difícil temperar as notícias com uma pitada de reflexão? Para isso talvez bastasse um pouco mais de investigação e coerência, que na certa não fariam baixar o ibope, porque o público entenderia muito bem uma visão menos superficial das notícias, e acho até que está carente disso. Sem hipocrisia, caretice nem moralismo barato.

domingo, 18 de maio de 2008

O lado bom das coisas


Rembrandt. Adão e Eva.

Quando acordou da anestesia que Deus lhe aplicou para tirar sua costela e fazer a mulher, Adão deve ter na mesma hora corrido atrás de Eva para tentar restabelecer a falta. Não conseguindo alcançá-la, fechou o portão do paraíso para que ela não pudesse sair. Ela então fez amizade com a serpente e aprendeu uma porção de coisas que nem passavam pela cabeça dele. Acabou conseguindo que o próprio Deus abrisse o portão.
Daí pra frente foi acontecendo tanta coisa que ele desistiu de restaurar a costela e afinal convenceu-se de que era melhor deixar que aquela criatura fosse ela mesma. Mais um pouco, Adão foi ficando tão impressionado com a performance de sua costelinha falante que passou a procurar entendê-la melhor, ouvir e aproveitar suas idéias. Mais recentemente chegou mesmo a delicadezas impensáveis anos atrás, como não esquecer o dia do aniversário dela e demonstrar sem medo sua ternura e sua admiração. Em casos excepcionais, chega a ser mãe junto com ela, dividindo preocupações e também coisas mais concretas, como levar as crianças à escola e à pracinha, cuidar do filho doente ou fazer com eles o dever de casa.
Eita mundinho bom!!!

sábado, 10 de maio de 2008

Querida mamãe



Quando resolvemos casar, Dilo e eu sabíamos que nossa vida em comum não seria como a da maior parte dos casais que conhecemos. Não conseguimos imaginar um dia-a-dia de renúncias e submissões, sempre lutando contra para conseguir levar a vida adiante. A gente quer lutar a favor. Já chegam as obrigações de trabalho, as horas marcadas e o corre-corre para comer o tal pão com o suor do rosto (argh!). Por isso combinamos que nossa casa tem que ser arejada, alegre e cheia de sol. Onde cada dia seja realmente novo, onde haja lugar para surpresas e improvisos. No que depender de nós, queremos dar sempre alegria e bem-estar um ao outro.
Para começar, separamos um quarto para o amor e o resto da casa ficou para a amizade, o companheirismo e a solidão, quando der na telha de um ficar sozinho (às vezes é muito preciso, pode acreditar). No quarto, a condição é não duvidar de nada e confiar sempre. Temos uma comunhão universal de propósitos, e a felicidade veio morar com a gente e não parece disposta a mudar de endereço. Cada um diz ao outro as coisas de modo natural e nunca, nunca mesmo, faz com que ele se sinta desrespeitado. E acredita em tudo que o outro disser. Cumplicidade completa.
Não é invenção do machista da dupla, planejando me passar pra trás e pular a cerca sem conseqüências. A maioria das mulheres ainda pensa assim. O trato vale para os dois do mesmo jeitinho. Queremos ficar juntos, é tudo que mais queremos nesse mundo. Mas se entre nós se interpõe a vida com suas exigências inesperadas, somos realistas o suficiente para entender que não há como lhe resistir. A vida é sempre mais forte. Um dia ela nos pega pelo pé. É uma decisão nossa, e pode acreditar que não há cinismo em pensar desse jeito. Não é o que chamam “casamento aberto”, porque não há propósitos. Fizemos um pacto: as coisas têm que acontecer espontaneamente. Eu sei que é difícil de acreditar. Mas enquanto o outro quiser ser acreditado, é sinal de que não desistiu do grande encontro, da cumplicidade total nem do segredo nem de nada. Isso é o que vale para o amor – que a gente ainda se queira acima de todo o resto, seja lá o que for, que cuide um do outro como a coisa mais importante do mundo. Que o amor seja do tipo que traz também amizade e confiança. A gente só acredita em casamento se for desse jeito.
Pode pintar ciúme, faz parte da coisa toda. Não é proibido, é até um bom sinal. Mas não pode ficar solto feito bicho brabo. É parte da gente, tem que ser tratado com carinho pelos dois como um aliado que vai nos levar à reconciliação (quer coisa mais gostosa que se reconciliar?). Depois, não é proibido brigar. É mesmo impossível não brigar nunca, já que, por mais cúmplices, somos dois. Se a gente não tivesse a liberdade de brigar, ia acabar numa camisa-de-força se odiando. Mas está implícito que a liberdade deve valer em todos os casos, e se acontecer o que agora nos parece impossível, mas a experiência diz que pode acontecer – o amor ficar doente ou até morrer – o carinho não morre. É uma delícia saber que, aconteça o que acontecer, seremos sempre amigos, cúmplices e se possível confidentes. Grandes amigos, leais por toda vida.
Quanto ao cotidiano, acontece justamente o contrário: é preciso duvidar sempre, manter as inadequações funcionando e garantir um mínimo de diversão no dia-a-dia. Não creio por exemplo que ele seja capaz consertar o banco do jardim, e faço questão que ele saiba disso. Deixarei que experimente o martelo e os pregos, mergulharei ternamente seus dedos inchados em gelo e, se o pior acontecer, bem humorados jogaremos fora o banco de ripas quebradas que nos terá rendido uma boa história para a próxima reunião com os amigos. Ele não levará a sério minhas tentativas de conseguir um suflê mais leve que o de sua tia Aurora, mas há de prová-lo com gula – e pode rir de mim se eu perder a aposta, porque depois a gente vai se beijar. Seguiremos pelo dia-a-dia fazendo tudo que desejamos sem abrir mão do direito de errar, experimentar e tentar de novo. Caroços no mingau, infiltações no teto, arranhões no carro novo, tudo será superado, mesmo que seja irritante – irritação libera adrenalina, e adrenalina é ótimo pra viver.
Nos casos críticos, como mágoas ou decepções, o segredo maior está em deixar a discussão para três dias depois – passado portanto o momento cabeça-quente, motivo maior das querelas fatais. Depois de frios, os fatos mais desagradáveis podem render boas piadas e se tornar estimulantes. Mas quando não for possível deixar de brigar, se a adrenalina transbordar e invadir o sangue como fogo na pólvora, brigaremos pra valer. Sem agressão física, é claro, mas com licença para exercer raiva explícita e atuante, valendo até quebrar jarras ou copos (menos os do jogo de cristal). Ao contrário do que possam imaginar, tais crises funcionam como poderoso afrodisíaco.
Sabe, mãe, a gente quer se amar, porque é bom demais, e vamos tentar levar adiante nosso plano de vida. Querer reduzir o outro a si mesmo pode estragar tudo. Nossa casa tem que ter espaço para cada um do jeito que é.
Não contamos a ninguém nosso segredo, mas afinal você é nossa melhor amiga e merece partilhar dessa felicidade que inventamos. Isso vai tornar você a mãe bem-amada de um casal feliz.
Muitos beijos e todo o carinho de seus filhos
Lulu e Dilo
PS: Sei que você está pensando em como vão ficar as coisas quando tivermos filhos (que nós queremos e você também, não pense que me engana!). Por enquanto só podemos dizer que tudo que desejamos para eles é que aprendam a amar com a gente. O resto se ajeita. Santo Agostinho disse “ama e faze o que quiseres”, não disse?

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Desigualdade ou emancipação?



Jacques Rancière. O mestre ignorante. Cinco lições sobre a emancipação intelectual. 2ed. Trad. Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. 192p.

Partindo de uma experiência insólita em sua longa carreira de pedagogo, Joseph Jacotot, professor francês do início do século XIX, apercebeu-se de que o processo de aprendizagem pode não consistir naquilo em que o senso comum e a teoria então vigente (e vigente até hoje, temos que reconhecer) haviam consagrado. O que Rancière denomina de “aventura intelectual” aconteceu-lhe quando, exilado por motivos políticos nos Países-Baixos, Jacotot ocupava o posto de leitor de literatura francesa em meio período. Ignorando o holandês, o mestre não teria como responder às dúvidas de seus alunos sem que alguma coisa em comum o ligasse a eles como canal de comunicação eficiente o bastante. Esse canal se apresentou sob a forma de um livro – o Telêmaco em edição bilíngüe publicada em Bruxelas. Por meio de um intérprete, ele indicou o livro aos estudantes, recomendando que aprendessem, com o auxílio da tradução, o texto francês.

“Quando eles haviam atingido a metade do livro primeiro, mandou dizer-lhes que repetissem sem parar o que haviam aprendido e, quanto ao resto, que se contentassem em lê-lo para poder narrá-lo. Era uma solução de improviso, mas também, em pequena escala, uma experiência filosófica, no gosto daquelas tão apreciadas no Século das Luzes. E Joseph Jacotot, em 1818, permanecia um homem do século passado.”

Esperando um resultado desastroso, o mestre pediu então aos alunos que escrevessem em francês o que achavam do texto lido. Era uma avaliação necessária da experiência totalmente empírica imposta pelo acaso. A surpresa no entanto foi das melhores: “seus alunos, abandonados a si mesmos, se haviam saído tão bem dessa difícil situação quanto o fariam muitos franceses”. Constatou que haviam sido capazes de entender o texto e com isso aprender francês o bastante para escrever na nova língua sobre o que haviam lido.

A experiência, capaz de revolucionar seu espírito, levou o pedagogo a desenvolver uma reflexão crítica sobre qual seria de fato a grande tarefa dos mestres. A conclusão a que chegou constitui a heterodoxa teoria, inaceitável para a época, de que ensinar à maneira tradicional – um mestre que “sabe” liberando frações de seu saber para alunos ignorantes – é perpetuar a distância que faz da sociedade (e da escola, seu símbolo) um lugar estruturado em torno de fossos intransponíveis a separar mestre e aluno, quem sabe mais e quem sabe menos, quem manda e quem obedece, quem tem mais ou menos poder. Em resumo: os “melhores da turma” sempre deteriam o poder e a regência dos outros, os que ignoram, os que não conseguiram ser bem-sucedidos e nunca chegariam a sê-lo se não lhes ocorresse o “clique” que permite o acesso a sua verdade mais subjetiva, onde se encontra a fonte dos melhores recursos e o caminho aberto às aptidões intelectuais de cada um.

O esforço para seguir os passos do mestre e assim transpor a distância que separa o aluno dele é um enganoso método de progresso pessoal, segundo o ponto de vista de Jacotot. Porque esse esforço roubará dos discípulos a energia e a espontaneidade de que necessitam para descobrir por si mesmos o que convencionalmente aprendem a ver com os olhos de outros, acumulando saberes parcelados, muitas vezes impossíveis de reter. A experiência era de ordem cartesiana: teria que envolver mais que informações acumuladas. O exercício da curiosidade natural e a vontade genuína de conhecer suprem métodos sofisticados e elaborados que chegam de fora, pelo pensamento arbitrário dos que detêm o poder de ensinar.

A esse processo espontâneo de aprendizagem, Jacotot atribui como resultado um saber que é necessariamente também conhecimento, no sentido de que aquilo que assim se aprende é compreendido e incorporado a um acervo pessoal sob a forma de experiência vivida e indelével.

Por essa e outras razões conexas, Rancière percorre propositadamente um conjunto de atalhos e caminhos que examinam a teoria pedagógica convencional. Sem utilizar conceitos consagrados ou idéias que são pontos pacíficos para os defensores da escola que conhecemos, busca em cada capítulo e em cada item do livro revisitar o processo de aprendizagem com a liberdade de quem descobriu uma nova vertente. A novidade era abolir-se a noção segundo a qual “há seres inferiores e superiores; os inferiores não podem o que podem os superiores”. Essa “hierarquia das inteligências” perpetuaria as desigualdades que beneficiam os detentores do poder.

“Não há inteligência onde há uma agregação, ligadura de um espírito a outro espírito. Há inteligência ali onde cada um age, narra o que ele fez e fornece os meios de verificação da realidade de sua ação.”

A veracidade está no cerne dessa experiência. Assim, é a experiência de cada um – que ele chama “seu próprio negócio” – que o levará ao conhecimento. Um pai ignorante pode levar o filho a adquirir conhecimento, contanto que dê a ele a oportunidade de descobrir por si só esse conhecimento, não como “um pedagogo gentil”, mas como “um mestre intratável” que levará o filho a querer se emancipar. Para isso, todas as faculdades são chamadas: atenção, determinação, persistência, curiosidade. Quando alguém efetivamente aprende alguma coisa, aprende porque quer aprender; e para isso está acima de tudo sozinho, interessado e entregue a sua experiência. Ele quer “adivinhar”, está atento aos indícios e à tradução do que lê, do que vê e analisa.

O traço socrático dessa atitude é bem visível: na base de tudo está o “conhece-te a ti mesmo”. Assim como no caso de Sócrates, que a seu tempo deu origem a uma escola com reflexos políticos em seu meio, o Ensino Universal, como foi chamado mais tarde o pensamento gerado pela aventura intelectual de Jacotot, não conseguiria manter sua força original. Mas na verdade, jamais morreria.