terça-feira, 22 de abril de 2008

Coisas do Rio



O Rio tem um quê de inesperado. Aqui acontecem coisas difíceis de encontrar em outras cidades do mundo, até mesmo do Brasil. São traços de personalidade que os cariocas e seus amigos de fora vão absorvendo, à medida que se acostumam às ruas, bairros urbanos ou da periferia. São cenas típicas, sentimentos que se instalam na gente que vive aqui; paisagens que incorporamos ao dia-a-dia; costumes que se adotam sem saber bem por quê. Nada mais característico do Rio do que essa sensação de gratuidade, esse contágio fácil que vai generalizando um jeito de viver e agir; que inventa hábitos, expressões, gírias que acabam incorporadas ao carioquês. O jeito de vestir irreverente, a informalidade. A vivacidade, uma espécie de astúcia malandra de procurar o que fica mais simples, mais à mão, o que soa mais despreocupado e casual. A alegria de viver que chega às raias da inconseqüência. Um certo atrevimento. E mesmo no inverno, o descaramento de sair sem casaco num frio de dez graus. Ou de casaco e sandália havaiana. Só um carioca pode fazer questão de ignorar o guarda-chuva, faça o tempo que fizer. E só as (poucas) cotias do Campo de Santana não fogem das pessoas. Passa-se pela lagoa e lá está uma ave desafiadora na proa de um barco, e a gente pára só pra ver um vôo se desenhar no meio do céu.
De repente, um poodle miniatura chama para a briga os pés de quem passa e todos se encantam por ele, enquanto sua dona segue adiante e deixa na calçada os dejetos do bichinho como se não tivesse notado. Ninguém como um carioca sabe se fazer de desentendido, quando lhe interessa. Ninguém desconversa melhor. E ninguém liga pra isso; há uma ética do desinteresse que sustenta a infinita tolerância carioca para com a contravenção, o crime, a bandalha, o relaxamento. O carioca é um leniente que perdeu o freio.
São cariocas os motoristas machões e marrentos e o poder desassombrado dos pivetes de qualquer idade. O carioca é cheio de saídas criativas. Improvisa, programa só pra não cumprir e não cumpre horários, a não ser que o emprego seja dos bons. Pode conviver com o caos e a promiscuidade das ruas, dos bares, das boates sem perder uma ponta de compaixão e uma leveza que recria pessoas e ambientes, mas de repente se invoca por qualquer bobagem e parte para a briga.
É bem a nossa cara virar padrinho de um garoto de rua, ficar inteiramente eufórico por isso e depois perder o afilhado de vista. Acreditar cegamente em alguém só porque tem uma boa conversa. Apaixonar-se de repente por alguém que nunca viu. Fazer amizades instantâneas como se morasse no paraíso.
E no entanto o paraíso carioca é cada vez mais apenas uma linda paisagem. Parece que as virtudes desse povo criaram raízes tão enormes que, com o passar do tempo, viraram um cipoal em que se tropeça a toda hora e atrapalha a vida. Porque uma virtude é o extremo oposto de um defeito, e acontece que os extremos sempre se tocam.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Tamagoshi falante



O celular, esse secretário do dia-a-dia, resolve tantos problemas quanto os que cria. É verdade que posso falar com quase qualquer pessoa que me interesse de quase qualquer lugar e quase a qualquer hora. Mas se o levar muito a sério (e às vezes é preciso), transformo o aparelhinho de aparência inofensiva num ser que de alguma forma me domina. Um tamagoshi (lembram dele?). Uma espécie de filho sem o amor necessário para cuidar dele sem irritação.
Se estou no cinema, no teatro, em um show ou num casamento, mas espero uma chamada importante, tenho que baixar o volume do ringtone para que não me faça pagar um mico, mas devo mantê-lo em contato comigo para não perder a tal chamada. E a chamada que recebo ou é engano ou é do corretor que me vendeu um apartamento no ano passado e tem uma ótima sugestão de cobertura na Barra que não me desperta nenhum interesse. No trabalho, no carro, em casa, há diferentes protocolos para lidar com ele: ligar, desligar, menos ou mais volume, nunca perder de vista e de ouvido, manter contato físico ou não. Num passeio ou reunião informal, é câmera fotográfica obrigatória, porque as pessoas ficam discretamente ofendidas de não merecerem a atenção de uma foto. E se você possui um celular sem câmera, que espécie de pessoa será você?
E quando o som picota, e você não sabe se grita, chega perto da janela ou sacode o bichinho? E os sinais misteriosos que ele emite em seu visor mas não lhe dizem nada absolutamente? E os recadinhos indecifráveis que exibe, ainda que a chamada corra normalmente, só para: a) intrigar o usuário ou b) mostrar que é que manda nessa relação? E as mensagens comerciais, que o matam de raiva por ter que parar o que estava fazendo para atender ao plim? E se você está dirigindo e esqueceu o fiozinho do áudio? Pela lei de murphy, é multa na certa.
E fique ligado, porque no aeroporto é preciso desligá-lo até depois do embarque, ligá-lo na espera inútil de alguma chamada, porque você não pretende fazer nenhuma, e, chegado ao destino, constatar que justo aquela cidade está na região que ele não pega. Durante seu sono, não desligue o celular, porque alguém pode precisar de você – e aí a moça do telemarketing aproveita a calma das seis e meia da manhã pra começar seu trabalho e acorda você, que foi dormir às quatro e não consegue adormecer de novo.
Enfim, um celular é um must e um saco. Um fardo leve e pequeno quanto à utilidade que pode ter em momentos estratégicos, e uma mala sem alça de um modo geral.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Me poupem



O que está vivo tem que se mexer, nem que seja em ritmo de tartaruga e preguiça. Mas se conseguir puxar a comida de ladinho, mexendo só um dedo, melhor, é ou não é? Oblíquo. Indireto. Inclinado. Sem continuidade. Só um pouco. De leve. No raso.
Nem longitudinal, fundo e radical, nem transversal, extenso e abrangente, mas enviesado. Nada de mudanças que mudem alguma coisa. Se melhorar piora. Vai levando. Não vai fundo não, no fundo tem lama, vai dar um trabalhão. Fica no chão. Deixa o lixo debaixo do tapete.
Interessa o que toca só as aparências, o que todos olham sem ver, e diz respeito às impressões, não mais. Por fora bela viola – a sabedoria popular é que vale. Varre onde o bispo vai passar. Só pra inglês ver. Interessa fazer uma reputação, uma fama, e depois deitar na cama e colher os frutos. Ninguém vai mesmo lembrar de nada sem ser na diagonal dos últimos dez minutos.
Quem quer saber de raízes? Raiz, só de árvore. Pra que ir mais longe? Não cansa minha beleza. Deixa estar, pega leve. Deixa rolar.
Dar de ombros – assim tá bom, já chega. Essa mania de trabalhar só serve pra lema de eleição. Lembra do cretino que gritava dos palanques “meu nome é trabalho”? O vagabundo destruiu com os pés tudo que os outros tinham feito no capricho com as mãos. Quem mandou os otários darem duro? O mundo é dos espertos, dos nets, dos gérsons, lembram dele? Aquele que tirava vantagem em tudo? Quanto mais burro, mais peixe.
O mais fundo que o malandro chega é debaixo dos panos. E assim mesmo na diagonal, que é pra não cansar.