domingo, 30 de março de 2008

Verdades e mentiras



Não tenho muito medo da mentira. Ela pode ter conseqüências maiores do que se imagina, é verdade, e fazer um estrago em nossa vida. Mas acredito que nada ameaça mais a gente que a verdade – aquela verdade que você gostaria de manter bem escondida dos olhos alheios. Talvez nem seja tão terrível assim – ou pode ser que seja. O que importa é o que representa para a gente ter marcas de acne na pele, por exemplo, mau hálito ou gordurinhas indevidas para a imagem que você considera ideal. Nem sempre porém o mal é assim tão inocente.
Os outros podem ver o que você gostaria que não vissem. Mas pode ser que te traumatize mais que esse defeito seja comentado com maldade do que uma mentira mal-intencionada, da qual você pode se defender com unhas e dentes, provar que não passa de uma lamentável invenção e ainda sair muito bem aos olhos de todos. De quebra, o mentiroso talvez sofra mais do que você mesmo.
A literatura e a vida estão cheias de exemplos do que a intriga e a malícia alheia podem fazer a uma pessoa. Há boatos e fofocas que denigrem a imagem de alguém, que são difíceis de apagar e repercutem na vida. Mas por mais que se sofra por causa de uma falsidade, nada é pior do que ver divulgada uma verdade difícil de admitir e que se gostaria de revogar. O mal cresce, a auto-estima do indigitado encolhe e, dependendo da natureza da coisa, ele ou ela se sentem destruídos de um jeito difícil de se reerguer.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Já dizia o ministro

"Poetas, seresteiros, namorados, correi..."



Desde o primeiro Clair de Lune que pairou sobre os telhados irreais de minha infância, passando por Ouro Preto em noites enluaradas, acho que a Lua não pode ser um mero satélite. Prima do vento, namora o mar, mas rola com as nuvens, instiga as tempestades e some. Não há oráculo nem pesquisa que indique as origens da obnubilação que essa luz feiticeira convoca. Luar em minha opinião é composto por fractais físicos, mentais, espirituais ou só visíveis pelo intelecto e a olho nu. Começa aí o paradoxo - o olho nu do intelecto. Não fosse por essa luz, ficaria bem mais difícil entender que há coisas que não entendemos, ou que entendemos só em parte, ou de que experimentamos os efeitos sem nunca chegar a definir causa suficiente que os explique. Luar tem tudo a ver com todos os eus que carregamos, tormentos e euforias escondidos como caracóis iludidos pela proteção da casca.
Luar é afinal reflexo da luz solar, reflexo de reflexo (fractal, fractal), luz da palidez de um corpo morto que inventa uma vida. Luz da esterilidade física, fecundando tudo que toca. Luz de um corpo de utilidade dúbia, apontado como regente das marés, de crescimentos, humores e de tudo que dizem mas não provam. Estímulo para a visão dos olhos e da imaginação dos homens - a julgar pela quantidade de obras que tem inspirado - e dos cães, a julgar pelos uivos que lhes arranca. Combustível grátis de magias negras e coloridas, bruxarias e assombrações, alimento de medos. Nosferatu. Figura do êxtase, do mistério; terror e seus deleites. Sugere o que a sombra esquece. Luminosidade lânguida que mais esconde que mostra, mãe de todas as ilusões sem futuro, signo ambíguo de bom astral. Inventora de emoções. Acompanhado de brisa, é pele fresca, véu de leve agitado, que roça as coisas e suaviza o sentimento causticante de existir. Se há flores, é perfume, e o silêncio se nutre de sua luz; se a noite é fria, é conforto; se é verão, o luar é o gozo.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Mulher escrevendo


Clarice Lispector.

Escrever era só a sobra. O que restava depois que o dia ia se cumprindo e ela cumpria seu papel – a casa bem cuidada, as garotas na escola, o almoço tão bem temperado, a roupa limpa e guardada, não fossem os vizinhos – ou pior, o marido – chamá-la de relaxada. Tinha uma reputação a cuidar. Dias ainda havia para as compras, estantes e tanta coisa por limpar e arrumar. E sempre, sempre os eternos ciscos, migalhas nas bancadas da copa, poeira aqui e ali, a gordura mal limpa no fogão. Tinha empregada, sim, mas essas empregadas cada dia querem fazer menos e sair mais cedo, uma lástima: todas relapsas.
E ao fim do dia, os momentos de ócio necessários para azeitar as idéias e deixar fluir certa energia semicósmica – porque em parte vinha era de dentro. Nem sabia se era mesmo energia: era mais concreto, como liberar alguma coisa física, um miniparto. E porque nada ainda estava dito, era então preciso colher palavras, limpar a terra, o sangue, a aura estranha e revirá-las sobre o teclado e plantá-las no monitor entre as outras, em seqüência de alguma lógica, às vezes nem isso. Sentir e pesar seu efeito, seu tempo de validade, porque às vezes ficavam murchas, pobres, indigestas ou indigentes de sentido, caso em que nada resolviam de sua necessidade: as palavras são como as cores para o pintor. Há um efeito final a levar em conta que, esse sim, vem de dentro, e é preciso ser fiel a ele. Então deixava passar um tempo e voltava a elas, as palavras. Assim podia ter uma idéia mais clara do que estariam fazendo ali, corrigir algum rumo sem destino como um piloto em vôo. O vôo era sempre meio cego.
Havia tardes e noites em que as palavras pareciam fluir tão facilmente, e ela enchia páginas e páginas seguidas, contente, realizada, achando o tempo um sonho. Mas não durava muito e a dor secreta dos dias voltava a se insinuar. A dor era sempre, não cessaria nunca e se expressava de um jeito sonso, devorando as entrelinhas. Chegava de leve, depois aumentava de intensidade e afinal causava um mal-estar que a obrigava a se curvar como quem carrega um peso maior que suas forças. Então às vezes apareciam poemas no monitor.

terça-feira, 4 de março de 2008

Edição extraordinária


Diogo Brasileiro. Chinelo.

Imagino que o anúncio do fim do mundo, nestes dias de comunicação vertiginosa, daria afinal uma oportunidade às pessoas para se revelarem do jeito que realmente são. Os ansiosos e hipocondríacos com que a gente sempre se esbarra aqui e ali possivelmente vão enfartar ou acabar com a própria vida sem ver o gran finale. E sempre haverá quem acredite que é doce morrer no mar. Ou dormindo, com ou sem gás aberto.
Mas a maioria talvez promova a maior festa de que já se teve notícia.
Afinal, acabou o primado do dinheiro, em razão do qual as pessoas ralaram a vida toda, obedecendo a horários menos ou mais implacáveis. Acabou a obrigação de honrar todos os compromissos, engolir sapo, aturar chefe ou patrão que se odeia ou fazer dieta. Casamentos de conveniência ou cansados de tédio podem enfim dar um alívio a seus reféns. Oprimidos e explorados podem afinal realizar seus sonhos mais libertários – e em alguns casos mais agudos dar vazão a instintos assassinos sem medo da cadeia. Exibicionistas, pervertidos, libertinos e seres assim em geral meio malvistos pela sociedade podem enfim arrancar as máscaras e se acabar na noitada. Cada um vai saber de si, e ninguém será de ninguém, se não quiser ser.
Por outro lado, os crentes, religiosos e místicos de todas as colorações estarão a mil, rezando, orando, cantando em coros desafinados, cumprindo penitências, fazendo procissões improvisadas, pregando enlouquecidos no meio das praças. Mais do que de costume, haverá público para eles, que são especialistas no além; nas horas extremas a credulidade das pessoas, que é diretamente proporcional ao medo, costuma atingir picos nunca dantes navegados.
Mas com certeza deve haver também místicos de profunda vida interior que escolherão acabar em recolhimento e silêncio, e para isso irão buscar o sossego das serras e florestas que ainda restarem por aí, porque os templos estarão entupidos de carolas e o ruído das ruas não lhes dará a paz necessária.
Paralelamente, os que se amam estarão juntos curtindo os últimos momentos com a possível serenidade que só amor de verdade pode dar. Apaixonados, recentes ou crônicos, vão querer morrer se amando, transando ou de mãos dadas em seus lugares prediletos. Artistas talvez prefiram esperar o fim praticando suas artes ou curtindo a beleza que deu sentido a suas vidas.
Não me lembro de ter algum dia parado para pensar em que reação teria diante dessa notícia. Mas já que falei no assunto, acho que ia querer reunir as pessoas que mais amo e liberar as comidinhas, os doces, o carinho e a doçura de estarmos juntos, sabe-se lá se pela última vez.