segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

A genealogia de Alice - I



Ninguém sabia direito de onde teria vindo o avô paterno de Alice. Isso preocupava a família e instigava todo mundo a fazer pesquisas e mais pesquisas em busca de alguma dica ou dado concreto, mas não havia praticamente de onde partir. Tinha um perfil hebraico, cabelos e olhos ingleses e um gênio de alemão nazista. Havia focos de resistência quanto a algumas hipóteses, mas era preciso ser realista: já que ninguém sabia ao certo e não se encontravam dados confiáveis, tudo podia ser verdade. Africano não devia ser, e assim mesmo nunca se sabe se, dois séculos antes, algum antepassado de olhos azuis não teria pulado a cerca na rede de uma escrava. Até mesmo uma descendência aristocrática, quem sabe? Pouco provável, é verdade, porque em tal caso ele não esconderia nada, faria até questão de alardear o fato, vaidoso do jeito que era. Alcebíades de Castro – assim se chamava o avô de Alice – podia bem ser um mitômano empedernido e não havia como provar o contrário.
O velho tinha contado aos filhos que vivera muitos anos em Vitória, e que lá resolvera, aos catorze anos, mudar de nome. A mulher, a segunda, que não era a mãe dos meninos, nada dizia; ficava olhando a conversa com um jeito indecifrável. Órfãos de mãe desde cedo, não tinham a quem perguntar sobre a família do pai. E parece que no século XIX não seria difícil mudar de nome, já que o registro civil era a própria certidão de nascimento, guardada na correspondente sacristia. O que causava espanto era que um fedelho de catorze anos conseguisse fazer isso sozinho, sem ninguém que lhe desse apoio legal. O avô alegava que seu padrinho lhe dera esse apoio, mas ninguém sabia mais do que ele contava, ou seja, que o padrinho tinha o mesmo nome que ele adotara. Mas por que teria resolvido mudar de nome nessa idade? A história cheirava a impostura, porque, a não ser em casos excepcionais, os adolescentes andam demasiado envolvidos com a tempestade hormonal que os assola, e além disso nessa fase da vida ainda não se perdeu de todo uma casca de inibição e certo desconhecimento das praxes do mundo exterior, de modo que dificilmente um menino dessa idade tomaria atitude tão pragmática e objetivamente definida como mudar de identidade.
Talvez até fosse um velho pagão, quem saberia? Podia estar mentindo quanto ao registro na igreja em que fora batizado, e ele dizia ter desaparecido num incêndio com todos os papéis da época. Mas como o único a conhecer e contar a história de sua vida era ele mesmo, ninguém podia ter certeza de nada. Segundo o próprio Alcebíades, cortara relações com a família e se mudara para a casa do padrinho, do qual adotara o nome. Simples assim. Ninguém aceitou essa versão sem objeções, mas o velho as ignorava solenemente. E como todo mundo temia entrar em confronto com ele, que cutucado muito de perto podia virar uma fera capaz de quebrar metade da casa, os argumentos nasciam e morriam no mesmo pé.
Comentava-se muito a história na ausência dele, e deve ter sido daí que nasceram as hipóteses levantadas pelos descendentes insatisfeitos. Ou porque a imaginação se atiça diante das coisas mal explicadas, ou porque havia indícios mínimos de alguma origem diferente, ou ainda porque pequenos fatos haviam escapado ao próprio Alcebíades, cada um tinha lá sua teoria para explicar de onde teria vindo o obscuro personagem. Ele mesmo não se abalava. O aparente poder de Alcebíades estava no jeito altaneiro com que tratava os demais. Estava sempre – ou fingia estar – inteiramente convencido de que ninguém duvidava dele.
(Continua)

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Pensamentos de janela


Foto Alfredo Muñoz de Oliveira.

Estava eu na janela a contemplar os galhos da amendoeira fronteiriça (uia!), quando me veio à cabeça que entre as idéias de estar e ter há nuances quase tão fogosas quanto as conhecidas diferenças entre ser e ter, que já se tornaram meio clichê – o que é mau, desgastante para uma idéia que vale a pena desenrolar de vez em quando.
A gente vive tão massacrada pela filosofia de mercado/lucro que se infiltra em nosso cotidiano, que há quem pense em mudar para as montanhas do Tibet e viver de leite de cabra e frutos silvestres, tecendo a própria túnica e dormindo numa gruta forrada de capim seco. Não seria uma rima nem uma solução, porque estaríamos perdendo os melhores filmes do ano, House e o sorvete de pavê, além dos riscos de faltar repelente de mosquitos e vacina contra veneno de cobra. Quem nasceu pra civilizado ocidental nunca chega a monge budista.
As diferenças entre estar e ter têm a ver com o instante (vide Clarice e o instante-já), única parcela do tempo com que podemos mesmo contar – e que dura... um instante – e o consumo, com todos os envolvimentos que ele supõe e dos quais é impossível fugir. O rolo compressor do mercado ameaça diluir nossos instantes, levando-nos a comprar o que talvez nos fosse inteiramente indiferente sem esse estímulo. O gosto e a criatividade são atingidos pela gosma invasiva da propaganda e pelos imperativos do lucro alheio. É um preço alto demais. Por sua vez, a mídia só colabora com esse estado de coisas, porque também precisa vender seus produtos.
Até a auto-estima está vendida ao mercado, porque só se considera vencedor quem faz dinheiro para si e para quem se dispõe a patrociná-lo. A maior parte da sociedade se marginaliza, escravizada por subempregos, sem falar na parcela dos que buscam afirmação e qualidade de vida na ilegalidade e no crime, nem sempre por falta de recursos, mas por motivos que vão de tendências de caráter a influências negativas do próprio meio.
Já que não dá mesmo pra escapar, é preciso aprender a enfrentar o bicho. Acredito que ajuda um certo descompromisso com os valores vigentes (a maioria deles sugeridos pelas mensagens da propaganda), porque a vida é aqui e agora, e não temos a menor idéia de até quando chegaremos. Não quer dizer desbunde geral, não mesmo. Quer dizer apenas certa autonomia que permita viver mais intensamente o instante-já de que falava Clarice, e que dura o tempo em que a roda em movimento toca o chão. Ir o mais fundo possível naquilo que temos prazer em fazer. Curtir as pessoas importantes, viver o amor de modo pleno, realizar projetos sem comodismo – enfim, ir até onde se puder chegar, tornando a vida uma sucessão de instantes que valha a pena lembrar. O próprio trabalho pode dar muito prazer a quem o faz e gosta do que faz.
Não é preciso ter muito. O essencial é estar bem, estar inteiro no momento em que se vive. Para isso servem o coração e os sentidos, a memória e as mãos, o corpo e o pensamento.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Bons propósitos


Foto Carlos Matos.

O imenso mal de minha vida, motivo de algumas frustrações, mas também de alegrias que só eu conheço, é que não deixo nada pra depois. Se alguma coisa me atiça muito, entro nela e me atolo até o nariz. Obviamente, há coisas que não podem ser tratadas desse jeito. Quase nada pode. Sei bem que para cada coisa que se faz deve haver um tempo de preparação, um tempo necessário em que se ronda, cheira, toma conhecimento do projeto, por mínimo que seja, como uma fera ronda a presa, antes de entrar no assunto propriamente.
Quando se trata de escrever, é absolutamente desastrado sair produzindo dois ou três textos ao mesmo tempo, porque o resultado vai ser o de sempre: você vira autor de dois ou três fragmentos, dos quais pelo menos um vai ficar esfriando na gaveta até ser retomado – e aí será um prato frio, e vai ser preciso um tempo e alguma força de vontade pra não abandonar o que se começou. Mas quem disse que a sensatez habita meu micro? Meu micro é um pequeno caos dividido em diretórios nos quais bem que me esforço para organizar um pouco a sopa de letrinhas de meus arquivos.
Mas se nem nesse domínio estritamente meu consigo estabelecer uma ordem apreciável, que dizer das atividades que não dependem só de mim? Não contando com os afazeres do dia-a-dia e passando ao espaço da agenda, tenho que fazer justiça a essa pobre agenda incompreendida, que só falta falar pra me lembrar das horas marcadas que não anotei e esbaforida lembro na última hora. Justiça seja feita: em geral lembro. Mas às vezes – se o que a agenda registrou é muito apelativo ou importante para mim – lá vou eu remarcar a dentista, minha vítima predileta.
Como estou ficando crescidinha, resolvi recondicionar esse lamentável comportamento, ao menos quanto a meu trabalho. Não interrompo mais um texto nem que chova bala perdida. Se começar, vou até o fim. Palavra de quem nunca foi bandeirante nem muito menos escoteiro. E mesmo que o ano novo esteja longe, escrevo sobre bons propósitos. Deve ser por causa da doce alegria de estar ouvindo, no DR Netradio, My foolish heart, piano e voz de Bill Evans – que, Deus sabe, é um néctar dos deuses para os ouvidos cansados do rock gótico que a adorável adolescente da casa costuma escutar.