quinta-feira, 29 de novembro de 2007

A história na gaveta



Estava no fundo do baú (metafórico – na verdade era uma prateleira de armário dessas em que a gente só mexe na faxina do Natal). Não sei em que ano foi escrito, mas deve ter sido há muitos, porque estava datilografado por Berta, uma amiga que passou por minha vida antes de 1990 – quando o primeiro XP entrou em cena lá em casa – como um cometa desses que aparecem de quando em quando e somem sem deixar vestígios. Berta era um barato de pessoa.

O original datilografado já era uma segunda via, porque a primeira foi manuscrita. Foi num dia de mudança que o encontrei, quase por acaso, e não me lembrava bem dele. Na confusão das caixas empilhadas e da arrumação na casa nova, só o reencontrei três dias depois, mas ler mesmo só em uma semana ou pouco mais. As primeiras emendas, a lápis, devem ter sido feitas logo que Berta me entregou as folhas, agora um pouco amareladas.

À medida que ia lendo, percebi por que me esquecera dele. Contava uma história perigosamente parecida com a de um parente distante, o que deve ter sido uma peça do inconsciente, e fiquei com medo que alguém lesse e o identificasse. Por isso ele dormiu tanto tempo fora de casa, quer dizer, fora das gavetas a que teria direito. Mas ali estava, um texto de 125 laudas batidas à máquina por uma profissional competente e caprichosa. Olhei-o durante algum tempo sem a menor idéia do que faria com ele. Publicar, nem pensar. O parente ainda existe, ainda poderia ser identificado como o anti-herói da história. O mais recomendável seria modificar alguns dados, lugares, tempo decorrido e acima de tudo características pessoais que, mesmo já alteradas para a história original, ainda tinham muita afinidade com as características reais do muso.

“Que maluca”, pensei com meus botões. “Como é que eu faço uma coisa dessas?” Deixei as folhas na primeira gaveta para voltar ao texto assim que tivesse tempo e fui tratar da vida.

Dois dias depois recebo um telefonema e não havia jeito de identificar a voz. Mas duas ou três frases foram suficientes: era ele, meu anti-herói. Uma pessoa que nem me passava mais pela cabeça voltar a ver. Primeiro porque estava morando longe do Rio – sabem onde fica Goiás Velho? Pois é. Segundo porque é um parente também longe – terceiro grau é quase não-parente. Sem saber o que dizer, soltei um que surpresa inexpressivo e esperei que me informasse o motivo do telefonema. Pois disse que estava de mudança para o Rio, tinha comprado um apartamento no Flamengo, ora em reforma, e queria saber se podia se instalar aqui em casa durante uma semana ou dez dias com a mulher e o cachorro. “Ouvi dizer que você tem um quarto vago.” Mesmo pensando depressa, não achei uma boa desculpa para evitar a fatalidade.

Moral da história: vieram, viram e gostaram tanto que ficaram hospedados no quarto que me serve de ateliê de pintura durante três meses. Além da mulher e do cachorro, que latia metade da noite em horários variados, vieram também uma cama desarmada e um horrendo jogo de sofá e poltronas que me atravancaram o corredor de entrada. Depois de um mês infernal, fui horrivelmente tentada pelo demônio da escrita a publicar o livro com a história dele sem trocar uma vírgula e fazer um lançamento em que fossem homenageados como queridos primos vindos de fora. Resisti bravamente e pensei que mais eficiente seria ajudar a concluir a reforma do apartamento do Flamengo. Que aliás ficou uma graça, com o jogo de sofá e poltronas logo na entrada e um pé de antúrios de plástico na mesinha de centro.

Os primos ficaram tão gratos que agora todo fim de semana vão almoçar lá em casa. O texto que Berta datilografou continua na gaveta, sabe Deus até quando. E o pior é que a história é ótima.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

O armário e sua alma

Quieto ali, o armário de espelho enviesado, sisudo na sombra ao fundo do quarto, e o céu insondável a se contemplar no cristal como um longínquo olhar perdido.O guarda-roupa reflete mais do que sua vida cheia, elegantemente contida nos ângulos bem-acabados. Não seria mesmo de admirar se lhe ouvissem um pigarro de repente, uma tossezinha ligeira de cavalheiro distinto. Excelentíssimo senhor guarda-casacas, apesar de tudo carregando o céu na alma.

Pensaria, se um armário pensasse, nos brocados, pelúcias, casimiras inglesas e sedas italianas, sobretudos, peles, longos e demilongs que o teriam habitado. Dois séculos passados, outras terras, outras gentes. As festas, as danças, tudo tão longe e diverso. Uma farra de minuetos e valsas vienenses.

E as cenas, ante o espelho audaz e frio? Amores idos e bem vividos, impressos em luxúria, as faces desarmadas a todo flagrante, os corpos em movimento, contornos dotados de vida daquele tempo – não seria diferente de agora. Então o espelho audaz de faces desarmadas seria, além de tudo, um mordomo solene e discretíssimo, inteiriçado, enfarpelado, daqueles que tudo vê, tudo sabe e permanece mudo como só os armários sabem ser. Também um guarda-culpas.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Ouro Preto - ladeira acima, ladeira abaixo



Quem não conhece a cidade senão de ouvir falar, não faz idéia. É muita coisa ao mesmo tempo. Pisar o chão dos setecentos, andar entre as paredes profundas e os tetos incríveis de lá, entrar num restaurante vertiginoso que ao mesmo tempo consegue ter os cantinhos e as mesas mais acolhedoras que alguém consegue imaginar, é uma experiência que devia fazer parte do acervo de vida de todo mundo.
Tudo bem que tanta igreja cansa, mas não precisa ver todas de uma vez ou nem todas. Algumas são imperdíveis, como Efigênia, Pilar, São Francisco. Mas tem o horizonte, o céu, as montanhas mais inacreditáveis, o cheiro de forno a lenha. E por cima de tudo, o clima, que mescla cultura refinada com juventude, agito com ecos tão antigos, cenários de romance com a dureza das pedras, brechós de objetos irresistíveis e artesanato com a mais descarada mercadagem pra turista ver. E haja grupos, conjuntos, tribos, eventos, festas, trampos, comidas e bebidas (e quase digo marijuana, mas me calo em respeito a Tiradentes e sua turma careta).
A cidade anda meio cai-não-cai, de modo que é bom se apressar. Além disso, tem favela crescendo. Uma pena. Um motivo de indignação, não pelos habitantes desvalidos, que não têm outra saída, mas por causa dos reponsáveis pelo bem-estar de seus eleitores, largados ao deus-dará, já que os governos não dão mesmo. E a pobreza se agrava. Não aquela pobreza de bem com a vida, que também tem muito por lá, mas a pobreza aguda, que torna as pessoas tristes e duras, e olha a vida com um olhar de ladeira abaixo.